22.7.05

Reflexo

O fim do dia me envolve –
Melancolia que chove
E o meu pensamento
Se ri do lamento
E rumo à alegria se move.

Além do vidro embaçado
Irrefletido, ao meu lado
A imagem me invade
(agridoce saudade)
De um sorriso lindo e amado.

19.7.05

O atirador

I

Lentamente, parou e assestou a arma à janela. Passou a observar, à espera de um deles. Com a calma e a paciência de quem tem todo o tempo do mundo para fazê-lo e, também, com a convicção de que tinha de ser naquele dia, como se fosse a última oportunidade. Certamente não o seria, mas, em toda vez que perseguia sua meta – mistura de objetivo e diversão, de profissão e válvula de escape –, agia assim. Invariavelmente. Outra vez, ali, do alto daquela janela, esperava vê-los aparecer por entre as árvores.

Municiou e carregou a arma, após ter certeza de estar numa posição bem cômoda. Acertou a mira, a lente telescópica não lhe dava dúvidas de que acertaria a cada tentativa. Eles não eram muitos, apareciam só ocasionalmente naquele local, e ninguém podia se dar ao luxo de desperdiçar uma chance como aquela. O sol estava brilhando naquela tarde quente de fim de primavera, como no primeiro dia. E todos eles passavam à sua vista em outros lugares, pois sabiam que o perigo rondava apenas aquela janela, aquele edifício, tinha de ser ali. E tinha de ser naquele dia, ao fim da longa espera de um ano. De tal maneira que eles já sabiam por onde não passar. Mas nem todos. Os mais jovens e inexperientes não tomaram conhecimento, e – finalmente um! Ele treme de emoção, de início, mas se controla e firma a mira da arma para não errar.

Frio, vê seu alvo, que, apenas por alguns instantes, baila inocente e ingênuo à frente de seus olhos. Brinca, evolui, goza de seus últimos momentos, pois o rifle já foi disparado.

Vagarosamente, em fração de segundo, o projétil penetra e o cérebro da vítima, sem pensar, mas sentindo, paralisa. Cai e se espatifa no chão rígido, para deleite do atirador, ao ver a longa queda – de alguns segundos para ele, mas eterna para o alvo.

A missão, naquele ano, estava cumprida. Já se prepararia para o ano seguinte, a espera outra vez seria recompensada pelo inimigo morto. Contabilizou o lucro e foi embora, satisfeito e realizado mais uma vez. Muito pouca gente, lá embaixo, repararia em um pombo morto no chão.


II

O atirador pára e tenta retornar, lembrar o acontecido de novo. Não vai ser difícil; certas experiências nunca são esquecidas, especialmente quando são capazes de modificar totalmente uma pessoa. E ele é gente, é pessoa, e sofre com isso. Mas cada um pode achar o seu próprio remédio.

No caso dele, o “ópio” já tinha sido encontrado. Era naquela janela, naquele preciso dia que procurava os pombos para se preencher. Fora daquilo, nada mais podia importar. Só atacar o inimigo para defender o orgulho. Eis o alimento. Aproveite, dizia a si próprio. Todo um ano vai depender disso. Então, por que não sacrificar um dia? Era isso, portanto, o que fazia. E fazia da melhor maneira possível. Para si mesmo. Agressivo, planejado, satisfatório.

À hora de dormir, ficou pensando, com todas aquelas imagens girando a sua volta. Elas se misturavam com as paredes sem cor do quarto, acinzentado pela escuridão. Logo, a realidade se confundia com o subconsciente e, sem sentir nem lembrar, passou pelo limiar que o separava da outra dimensão – a do impossível.

Em alguns instantes, estava vendo outras coisas, numa escuridão repentinamente coberta de luz. Tudo, de muito tempo, parecia como novo outra vez (ah, e como houve vezes!). Novamente, apareciam cenas recentes, mas que diziam por trás cansadas e desgastadas.

A névoa se dissipa, e um homem olha por uma janela. É uma pessoa muito conhecida e importante, em um local familiar. Tem abaixo uma bela paisagem, que subitamente toma formas e cores. Entretanto, surgem aqueles pássaros, não se sabe de onde, mas que parecem mostrar uma intenção inamistosa. De repente, atrapalhado com o ruflar de asas, um gigantesco buraco se abre no chão e não existe mais equilíbrio para aquela pessoa. Fim de tudo.

O atirador acorda, lembra e reconhece com afeto e tristeza a pessoa. Aquele rosto de sonho estava num porta-retrato, para que não houvesse dúvidas da fisionomia; mais uma vez desperto, ele senta na cama e deixa o suor dar lugar a algumas lágrimas.


III

Já se sentia acostumado àquilo, pois já tinha acontecido outras vezes. Como um relógio – e até mais preciso, pois, embora falhasse, só poderia parar uma vez –, sua mente todos os anos evocaria aquele sonho, meio advertência, meio maldição. Era o aviso de que, apesar do compromisso descartado naquela oportunidade, tudo começaria de novo. O ciclo se repetia, como de costume, e o atirador podia então voltar à vida normal.

“Normal?” – ele se pergunta. E fica uma ponta de dúvida.

Qual era o parâmetro da normalidade? Era isso que o fazia com que se questionasse. Por acaso, quando passava pela fase de meditação e sofrimento, quando a iminência da chegada daquele dia capital o perturbava, abalando completamente a sua rotina, ele deixava de ser normal? Ver-se às voltas com a incerteza não era peculiar ao homem? (Num parêntese, por um segundo, ele quis ser pássaro também, para morrer, mas pelo menos sem o pesadelo proporcionado pelo raciocínio.) E será que mais essa dúvida se aglomeraria, como bola de neve, ao seu problema?

Ora, que nada! Se o objetivo tinha sido cumprido mais uma vez, e tudo já tinha passado... a foto continuaria junto à cama em seu quarto, os pombos continuariam existindo, mas aquela janela ainda estaria lá em cima, esperando por um dia de fim de primavera, para ser escora de seu rifle. Tudo continua!, e estava conformado.

Assim como acontecia com os pombos caídos na calçada, ninguém faria dele um cara diferente. Para todos, ele parecia um cidadão comum – e quem não parece? Pois, à frente daquilo que, de repente, podia acontecer a qualquer um, também estava uma pessoa que fazia sua parte na vida. Nada se mostraria estranho.


IV

A cena se repete para aquele cidadão, o atirador: escolhe a munição que vai utilizar, limpa a arma, guarda-a na caixa que a vai ocultar, o dia está chegando. Em um momento, ele lembra que, desde que cumprida a determinação, estará liberto de quaisquer outros problemas; afinal, o último ano havia ocorrido até sem obstáculos.

Com mais tranqüilidade, ele se dirige para o local: a natureza mais uma vez não tinha sido avessa aos seus sentimentos, e havia proporcionado um belo dia, em outro dezembro.

Entretanto, vê-se perdido: tinha tomado o caminho certo e, no entanto, não encontra o prédio exato, do qual miraria em alguns pobres pássaros. A surpresa toma conta dele, e se transforma em pânico em poucos segundos, ao descobrir o local que procurava, mas não o edifício, que havia sido posto abaixo. Só se vêem destroços do prédio.

Mais arrasado ainda está o atirador, que treme inteiramente, percebe os pés dormentes como que fugindo do chão. Nada pode fazer, porque o local não poderia ser outro, só aquela janela, ele está completamente aturdido. No meio da rua, de supetão, sem controle de seus atos, abre a caixa e carrega sua arma. Começa a atirar para qualquer direção, mesmo que seja em outras pessoas, uma vez que não pôde procurar por seus alvos – nesta hora, eles são outros, a confusão do atirador não lhe permite discernir – e porque não teria coragem de balear a si próprio, embora, talvez, fosse o que desejava.

Mas isso não será necessário: uma explosão diferente daquelas produzidas pelo seu rifle se destaca e, como um pássaro alvejado – assim ele imaginou que fosse –, sente seu corpo arder. Não é doloroso, mas é impaciente e angustiado. Estonteado, pára de atirar, o ruído do último tiro ainda ecoa em sua mente enquanto cai no chão.

Estivera lá, era ele, mas não era dele que tinha feito aquilo. Depois daqueles momentos, só gritos, o céu e cabeças girando à sua volta, o seu corpo algumas vezes sendo pisado e chutado. Agora sente dor, mas isso já é o de menos... gritos, o céu, gritos, pessoas, gritos e um gosto de sangue.

No dia seguinte, era sua a foto que apareceria, em destaque, em alguns jornais. Lembram sua estranheza exterior, mas esqueceram seu interior, igual ao de todo mundo.

* * * * * * *

Este é meu primeiro (e por enquanto único) conto. Foi escrito em 1987 e publicado na revista Sextante, da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs, em 1990.

16.7.05

Final alternativo

Uma inspiração rápida, um tempo curto, e meu texto fez uma querida amiga dizer o que na pressa eu havia omitido. Como um molho de chaves ou um número de telefone, ficou ao lado do teclado, esquecida, minha emoção.

Deixei-me levar pela racionalidade fria da análise de coincidências e não parei para me olhar no espelho e ver o que da memória nele se refletia. Por isso vuelvo a los 17... afinal, “deveria haver nesse intervalo mágico de 365 dias (...) algo que os outros não tinham – algo esse que eu não percebia”.


E se, agora, eu tentasse perceber?

Eu veria que, apesar do brilho dos meus 24 anos, nem por isso meus 17 foram obscuros. Os sonhos pareciam uma névoa disforme, mas daqueles dias em que se vê, difusa, a luz do sol. Tempos de assuntos desinteressantes no colégio, mas de mais clareza quanto ao futuro imediato, uma vez que o futuro remoto não havia sido ainda inventado aos 17. A flor do amor-perfeito ainda não desabrochara no jardim, mas já habitava minhas aspirações. Amigos, música, tempo, diversão... e a inevitável batalha entre hormônios e timidez, surpreendente descoberta – embora as vitórias do superego fossem mais freqüentes que as do id.

“We’ve got tonight”, “Hard to say I’m sorry”, “You and I”... ah, mas melhor para dançar era “Making love”, pois tem dois minutos a mais. O outro lado da meia-noite, território não mais desconhecido. Bate-papos e passeios na rua até de madrugada, pois o amigo do alheio não existia, ou estava, isso sim, alheio. Como eu, alheio aos gritos de “Diretas já” nas ruas - os ouvidos eram só para as canções pop descartáveis do rádio - ou o rock “guerrilheiro” de certa banda de Brasília que havia lançado seu primeiro disco e parecia promissora (será?). Futebol de botão - com amigos do bairro, e não com meu avô, que, infelizmente, faleceu também nos meus 17 anos. No cinema, os cartazes apresentavam “Amadeus”, que eu só fui ver anos depois. No futuro, estava apenas o vestibular, fronteira a ser desbravada e que, se não o fosse em seguida, o tempo daria outra chance.

Agora, os tempos são outros, as fronteiras são outras, e quais tenho a chance de desbravar? A da emoção, talvez, de forma bem tímida, como já disseram, mas já a vejo ao longe. E a dos sonhos, talvez não mais disformes, mas que valem a pena serem relembrados, alumiando assim o caminho para os 17 que estão por vir.

12.7.05

Volver a los 17

“De par en par la ventana
se abrió como por encanto
y entró el amor con su manto
como una tibia mañana
y al son de su bella diana
hizo brotar al jasmin
volando cual zerafin
al cielo le puso aretes
y mis anos en 17
los convirtió el querubín.”

(Violeta Parra)

Estava eu com 17 anos quando uma prima, dois anos mais nova, manifestou “como deve ser bom ter essa idade”. Também aos 17, um colega de curso de Inglês, que já havia chegado aos 24, afirmou: “Aproveita essa idade, é a melhor fase da tua vida”. Curiosa essa convergência de opiniões, vindas de duas pessoas de idades tão diferentes... O rapaz de 24 sente saudade da mesma idade cuja chegada a adolescente de 15 mal consegue esperar. Deveria haver nesse intervalo mágico de 365 dias, portanto, algo que os outros não tinham - algo esse que eu não percebia.

E continuo não percebendo, pois meus 24 não foram ruins a ponto de eu considerar os 17 tão melhores. Aos 17, eu estava sozinho; aos 24, estava namorando. Aos 17, no segundo grau, aprendia matérias que pouco me interessavam; aos 24, prestes a me formar em Jornalismo, estava cheio de planos e começava a adquirir um verdadeiro gosto por escrever. A iminência de me deparar com o mundo real dos recém-formados não me assustava tanto quanto a lembrança de que precisaria me alistar no ano seguinte.

O que me parece fazer sentido em meio a tantos aparentes contra-sensos é a diferença de situações. Meu colega de Inglês não teve oportunidade de fazer faculdade, estava trabalhando e ia se casar. Talvez os 17 dele tivessem sido melhores, com menos preocupações. E talvez chegar aos 17 fossem, para minha prima, o sonho de poder conquistar, dali a um ano, todos os direitos de uma maioridade cujas responsabilidades meu colega de Inglês já conhecia muito bem.

Voltar aos 17... vejo isso agora como um símbolo para um tempo, individual, que mescla os sonhos e a alegria da adolescência com o poder e a independência da vida adulta. Cada um tem seus 17 - os de Violeta Parra, assim como os de meu colega e os das aspirações de minha prima, caíram justo aos 17.

Agora que já somei 17 aos 17 e ainda mais alguma coisa, percebo que os meus 17 não caíram em um tempo assim definido. Entretanto, muito antes de eu conhecer a canção e de perceber a estranha coincidência que ligou minha prima e meu colega de Inglês, que nunca se viram, toda vez que eu dava vazão a meu lado mais alegre, mais criança grande, mais despreocupado, por alguma razão que desconheço esse lado tinha idade definida: 17.

11.7.05

Oops!

Escrever também é errar...

Eu havia esquecido, entre as perguntas do jornalismo, o "quando". Fiquei entre deixar por isso mesmo (o que algum planeta meu em Virgem não permitiu), editar o texto na camufla e admitir o erro. Como preferi a alma nua à maquiagem...

9.7.05

Nada se cria

O rato roeu a roupa do rei de Roma e a rainha disse: “O rei está nu”. Hmmm, não, não é assim que começa. Quem sabe assim: o gato comeu a história do rei, e a rainha de raiva rasgou o resto do rascunho...

Na verdade, aproveitei o gancho deixado dias atrás por minha amiga Katinha para ver se finalmente conseguia pôr o preto no ocre. Como todo jornalista que se preze, aproveito ganchos. Cada parágrafo novo da minha matéria tem que aproveitar um gancho deixado pelo anterior. O texto da revista resume o que os jornais publicaram ao longo da semana; o jornal, por sua vez, “chupa” informações da concorrência, da TV e do rádio... e mesmo o repórter que está lá acompanhando o nascimento da notícia não faz mais que captar e interpretar informações que outros criam para ele. Talvez por isso, neste mundo de gatos, vampiros e sanguessugas, muitos com o rei na barriga, seja tão difícil criar uma idéia nova. Nada se cria, tudo se maquia.

Por isso alguém que por acaso passou por esta página viu um título, três ou quatro linhas explicativas e nada mais. Isso já faz uma semana. O gato comeu a inspiração do autor, a qual teimava em não voltar. Deus sabe o que custou para sair o primeiro parágrafo. Mas talvez aí mesmo resida o primeiro passo. Porque não quero fazer deste blog um diário sentimental, nem me vejo em condições de contribuir para nossa literatura. Já disseram que eu sou um escritor de mão-cheia, mas abri as mãos e nelas não vi muito mais que duas letras M.

Entretanto, senti um dia uma comichãozinha de escrever algo diferente, que fugisse às batidas cinco perguntas do jornalismo (quem, o quê, como, onde, por quê), mesmo que não agrade. E – como me fizeram recordar os escritos de minha amiga – a palavra que o rei procurava para iniciar sua história está em qualquer lugar, ao lado dele, nas piadas do bobo da corte, nos planos para seu reinado ou simplesmente em seus sonhos, sua fantasia. Então, encorajei-me e resolvi inaugurar meu espaço com a dificuldade para inaugurá-lo.

Quem sabe isto sirva de exercício para minhas idéias e minhas palavras. Afinal, escrever é ao mesmo tempo dominar as palavras e dar-lhes asas. De certa forma, eu me desnudo, e não o rei – mas antes uma alma nua que páginas vazias.