29.8.05

Versos turvos

Encaro nos traços deixados algures
A indelicadeza de um pouso forçado
E a queda estilhaça respeito e estima
Valor diluído em posse e orgulho.

Tentei levantar-me, grilhão das palavras,
Mas quedo calado com tal prepotência
De um tempo que espera manter-se intacto
Não vendo a vida escapar-lhe entre os dedos.

Os versos são brancos, os tempos são turvos
Quem dera não visse, em tal desalinho
O zelo e o perjúrio, o afeto e a torpeza,
Mas tudo que passa carimba o futuro.

E a dor que agride, que trama, que castra
É fonte ela mesma de mais liberdade,
Me torna aconchego aos doces sentidos
E, à fria dureza, a rude muralha.

27.8.05

Tormento

Vento batendo a noite inteira
E não varre este meu pensamento:
Quando aparece a luz primeira?
Quando se muda em sono o tormento?

Depois de um dia de alegres cores
Purpúreo ocaso, só ilusão
Eleva nos ares fortes rumores
Do vento troando na escuridão.

Viro-me ao céu e, no afã de vê-la,
Em silêncio estendo meu grito:
Onde encontro a minha estrela,
Luz que refulge no infinito?

E eis que entre as nuvens ela aparece
E ouço uma voz em tímido brilho:
“O mesmo vento que o sono estremece
Tem o mais belo sonho por filho”.

23.8.05

Nós, o arquipélago

"Uma pessoa não passa duma porção de paixões, cercada de incompreensão por todos os lados".
(Erico Verissimo, em "O Continente")

22.8.05

"Hotel Ruanda" e os holocaustos modernos

Fiquei a me perguntar, ao sair ontem à tarde, de um cinema de shopping em um bairro de classe média-alta, o que pensavam aqueles shopping-goers, perfumados, pele alva e roupas de grife, do filme a que tinham acabado de assistir – e o que estariam pensando de si mesmos. Pois, ao terminar de ver "Hotel Ruanda", não pude deixar de sentir uma ponta de vergonha de minha origem caucasóide.

A trama básica de "Hotel Ruanda" assemelha-se a uma "Lista de Schindler" transposta para os conflitos étnicos na África. Em 1994, em meio a uma revolta da maioria hutu contra a minoria tutsi, que resultou na morte de mais de 1 milhão de pessoas, Paul Rusesabagina (interpretado por Don Cheadle), um hutu, acaba dando refúgio a centenas de tutsis no hotel que ele gerencia na capital de Ruanda, Kigali. O filme faz lembrar também "Um grito de liberdade", no qual o jornalista sul-africano Donald Woods (Kevin Kline) precisa escapar de seu país, dominado pelo apartheid, levando consigo o livro que escrevera sobre o líder negro Steve Biko (Denzel Washington). Duas histórias reais, dois elencos premiados, dois dramas contagiantes sobre temas relacionados – entretanto, "Hotel Ruanda" é muito superior.

Além de "Um grito de liberdade" sofrer com um corte brusco de ritmo e de plot com a morte de Biko, o filme mostra o sofrimento dos povos negros da África sob o ponto de vista de um branco. Em "Hotel Ruanda", o afroamericano Don Cheadle, além de balizar magistralmente a história do início ao fim (o que lhe valeu uma indicação para o Oscar de Melhor Ator), vivencia em seu papel a difícil sobrevivência do próprio Rusesabagina durante a revolta hutu. Ao dar abrigo aos tutsis, o gerente do hotel se torna também um refugiado, pois é considerado um traidor pelos demais hutus, e teme pela vida da sua família – a esposa de Paul, Tatiana, é tutsi. Por este papel, Sophie Okonedo também recebeu indicação para o Oscar de Atriz Coadjuvante.

A contundência de "Hotel Ruanda" está em nunca perder o ritmo da ação, bem dirigida pelo irlandês Terry George, que ainda assina, com Keir Pearson, o roteiro. Este também foi indicado para o Oscar este ano, por, de forma hábil e consistente, entremear a luta de Rusesabagina, que lança mão de todos os recursos possíveis para proteger os refugiados – incluindo suborno e relações advindas do cargo que detinha –, com cenas do verdadeiro genocídio que se tornou a revolta hutu e a incapacidade de ação dos "capacetes azuis" da ONU, liderados por um patético coronel vivido por Nick Nolte.

Mais patético ainda, contudo, é saber que as diferenças entre hutus e tutsis foram insufladas, por motivos políticos, pelos colonizadores belgas após a Segunda Guerra Mundial, o que o filme também denuncia – a mesma tática usada há décadas no Oriente Médio por aquela nação que diz defender a paz e a liberdade, comanda a ONU e, ao mesmo tempo, lidera a produção mundial de armamentos. "Hotel Ruanda", uma co-produção britânica, sul-africana e italiana, serve para lembrar que holocaustos provocados pelo ódio entre etnias não são exclusividade da Alemanha nazista – eles continuam sendo promovidos pelas grandes potências, uma vergonha que não deve ser esquecida.

Foto: www.rottentomatoes.com

16.8.05

16 de agosto

Gosto de lembrar certas datas. Alguns poderiam lembrar que 16 de agosto é o Dia do Filósofo. Mas, para mim, esse dia é importante por um motivo completamente diferente. Não fosse um 16 de agosto e eu certamente não estaria aqui.

Há exatos quatro anos, recebi resposta a um e-mail em que eu convidava uma paranaense, estudante de Letras, chamada Karen, para bater papo sobre cinema. O que me fez “pinçá-la”? Por coincidência, ambos havíamos feito comentário sobre o filme “Quase famosos”, de Cameron Crowe, no site Fulano – na época em que o Fulano era divertido –, e eu gostei muito do texto que ela escreveu.

Esse dia foi um divisor de águas.

Efetivamente, começamos a trocar idéias sobre a sétima arte (mas primeira na nossa preferência!) – e, da superfície das telas, passamos para a dos livros. Na mesma época, uma colega jornalista havia emprestado “O perfume”, que eu vinha lendo no ônibus, indo para o trabalho. Quando terminei a história do fascinante e abjeto Grenouille e fechei o livro, senti um vazio indescritível. No dia seguinte, eu estava em uma livraria para comprar “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, e iniciar tardiamente uma feliz viagem sem volta.

Depois, diversas influências foram se somando, e eis-me aqui, arriscando-me na literatura e não descartando a possibilidade de um dia me aventurar no cinema. Por isso neste dia lembro a Simona (gracias por el libro!); todas as amizades virtuais, que vêm me ensinando a escrever; a Martha, minha mulher, que me deu corda para levar adiante a idéia de meu primeiro livro; a Katinha, que sem querer me apresentou o Blogger... mas, principalmente, a Karen, minha amiga até hoje, que não fazia idéia do que aquele e-mail representaria, e o Cameron Crowe, que, com seus “Quase famosos”, deu asas a um praticamente desconhecido.

Omissão impossível

Há um bom tempo que me vem uma vontade de, simplesmente, prosear. Da mesma forma, um assunto vem me rondando neste blog: cinema. Decidi, então, matar os dois coelhos num só golpe.

A peteca me veio jogada por outro blog, do Eduardo Gameiro, que roteirizou “Sem Ana”, um trabalho selecionado para a mostra competitiva do Gramado CineVideo, evento paralelo ao Festival de Cinema. Poucos vão ficar sabendo dessa informação, pois o site oficial julga importantes apenas direção, edição, direção de arte, fotografia e trilha sonora. Roteiro e produção (Janie Paula e Eduardo Saraiva) foram ignorados.


Até posso compreender, como jornalista, que não haja condições para que os meios de comunicação coloquem a ficha técnica inteira dos filmes. Os jornais não têm espaço suficiente; rádios e TVs não dispõem de tempo. Agora, o site tem um considerável espaço vazio embaixo das informações do filme. Falta de tempo? Não acredito. O Festival começou ontem, dia 15, mas as ausências já estavam lá no dia 10.

Pode parecer pouca coisa, ainda mais que o valoroso roteirista está anunciando seu trabalho e se mostrando feliz em ter chegado lá – apesar dos deslizes da divulgação oficial do evento. E apesar da importância do roteiro – se os atores são as “caras” do espetáculo e o diretor é quem manda no filme, o roteirista é o dono da história, às vezes sobrepujando a importância do diretor, vide “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.

Tudo isso me parece sintomático do pouco cuidado com o valor da informação e também da pouca importância dada aos novos valores em um mercado abarrotado de filmes, no qual os brasileiros (que não vão aparecer sem uma fornida muralha de propagandas antes da projeção do primeiro fotograma) ainda têm muita dificuldade frente aos arrasa-quarteirões made in Hollywood e muitos filmes de excelente qualidade técnica e de conteúdo, mesmo estrangeiros, ficam pouquíssimo tempo em cartaz por exigirem um Q.I. de dois dígitos. Inclusive os filmes mais alardeados mundialmente estão proibidos de permanecer muito tempo nas telas – ora, temos que lançar em DVD e vídeo o quanto antes!

Nunca fiz nada em cinema seriamente, mas também sou um anônimo do mundo da comunicação. É um espaço difícil para ser conquistado por nós, terceiro-mundistas. Nem Fernanda Montenegro, a brasileira que chegou mais perto de um Oscar, tem foto no mais completo site de cinema, o IMDb. Até o Eduardo chegar deve levar tempo... mas a sobrevivência dos festivais, que já vi seriamente ameaçada na época em que eu estudava Jornalismo, e conquistas como a de tantas equipes de heróis como a de “Sem Ana” mostram que ainda existe espaço.

10.8.05

Tempo, tempo, tempo, tempo (sempre ele)


Um clique... e a câmera capturou uma fração de segundo em que a essência da vida se manifestava. Tomou emprestado, da mãe e da filha, um átimo de felicidade para lhes devolver para sempre esse momento.

Que importam eventuais erros que, no futuro, a jovem e alegre mãe possa cometer, ou a dificuldade que ela tiver para ensinar uma eternamente incompreendida menina-moça? Adivinho na foto uma marca deixada pela mãe, tão forte que o tempo não poderá desfazer. A sorridente filha não sabe ainda, mas já agradece à mãe o carinho, o amor que recebe, o que deve se projetar em cada dia da vida dessas duas mulheres.

Pois cada segundo hoje é determinante para a vida inteira – que dirá para a criança, quando tiver real consciência de um segundo, um dia, uma vida! Como nem todos os segundos valem uma lembrança, bom seria que o máximo deles se parecesse com o instante captado pela fotografia. Por isso, oro ao Senhor Tempo, como fez Caetano Veloso, pelo prazer legítimo, pelo movimento preciso, pelo brilho do espírito para que cada momento seja digno daquele que lhe vai suceder.

E então, quem sabe, qual mãe abraçando sua filha, cada instante seja um rosto que, ao calor do nosso, acende um sorriso e transmite uma fagulha de imortalidade desse momento.

1.8.05

Inspiração

Folheio páginas d’um coração,
imagens que se multiplicam,
dividem-se em frases e sons.

Troveja o bater da inspiração
Mas quantas palavras indicam
Aqui residir esse dom?

Meu reino por uma palavra!
Que um dia meu coração diga –
“Faça-se, então, poesia”.

Quisera minha própria lavra
Achar numa alma amiga
Os ecos de doce alegria.

E quem sabe, em frase inspirada,
Eu possa enfim renascer
E perpetuar o meu viço.

Afinal, sou tudo, sou nada –
Tudo o que eu decidir ser
E nada, mas nada além disso.



(Inspirado nas páginas diárias de uma amiga querida)