22.10.05

Referendum Inutilis

Passei a campanha inteira do famoso referendo de 23 de outubro debatendo(-me) entre propagandas e argumentos a favor do sim e do não para, às vésperas, encontrar alguma sintonia ao falar com uma amiga que prefere o voto nulo. Não que minha amiga tenha mudado meu voto, mas conseguiu pôr em palavras mais ou menos o que eu já pensava: estamos sendo estúpidos se acharmos que este referendo vai mudar alguma coisa.

Por que o sem-fim de argumentos? Por que tudo que se diz parece válido? Porque é uma questão ampla, séria, pessoal e controversa demais para ser decidida coletivamente com um simples apertar de botão. A urgência que nossas pseudolideranças políticas deram à questão da proibição da comercialização de armas é tão artificial que só pode atender a algum interesse político ou econômico. Faz lembrar a conveniência do desmonte do ensino público para a proliferação das universidades (bem) pagas.

Da mesma forma, a exacerbação do crime nas ruas é conveniente para a realização deste referendo. Qualquer que seja o resultado, arriscamo-nos a depois ouvir que a situação da falta de segurança no país não seria esta se o povo tivesse votado diferentemente em 23 de outubro. Melhor seria se fôssemos consultados, por exemplo, se um presidente merece continuar em Brasília, se os congressistas têm direito de renunciar para escapar de um processo por falta de decoro – ou até sobre algo bem mais prosaico, como a mudança da entrada nos ônibus, que foi enfiada goela abaixo dos porto-alegrenses sem que a Prefeitura ouvisse as reclamações da comunidade.

Mas voltando ao referendo: a campanha do sim aposta na incompetência do brasileiro para manejar ou guardar uma arma; a campanha do não aposta na incompetência dos governos para garantir a segurança pública. Ora, os noticiários dão mostras diárias de ambas as incompetências. E nem uma coisa nem outra vai melhorar, independentemente do resultado. Frieza, destreza e responsabilidade no uso de uma arma dependem de educação, de postura cultural. Garantir a segurança do cidadão depende de vontade política. Alguma chance de isso acontecer em frente a uma urna eletrônica? Não acredito.

Firmado na idéia básica do direito, da liberdade individual, tomei desde o início posição ao lado do não. Mas agora vou um pouco além: deveríamos dizer não ao referendo – e, como as chances de uma massiva anulação do voto não existem no Brasil, continuo votando não por ser a escolha mais próxima dessa idéia. Os efeitos, pelo menos, seriam iguais aos de uma não-realização do referendo.

A cultura do nosso povo, infelizmente, ainda não permite que decidamos razoavelmente sobre uma questão como a comercialização de armas. Absorvemos com muita facilidade e sem discussão qualquer "fenômeno" criado pela mídia, e os exemplos estão aí: Tancredo Neves, Collor de Mello, Lula... Assistimos a campanhas apostando na estupidez de uns e de outros e não vemos a estupidez geral criada e gerida pelo sistema – sendo um de seus filhotes mais novos a pretensa utilidade do referendo de 23 de outubro.

19.10.05

Lacuna

As agulhas da memória
Dilaceram este peito
Consumindo argumentos
Numa névoa dissipados;
E o doce olor de um dia
Hoje é sombra do que fora
Quando estrelas ao acaso
Da vereda eram lume.

Uma faixa movediça
(Este insólido terreno)
Quase abarca os pés da alma
Que em vão tenta alçar vôo
Sobre infindo oceano –
E este aparta, insensível,
A charneca e a terra firme,
A palavra e a resposta.

9.10.05

O silêncio e eu

Tarde de final de outono, e procurei um refúgio entre as árvores do parque, afastado da agitação que deixa barulho em troca dos pensamentos roubados. Pouco a pouco, os ruídos na rua foram dando lugar a meus passos no caminho de areia. Foi ali, onde os motores haviam se tornado um burburinho longínquo, que eu o encontrei.
– Então ela não quis lhe dar ouvidos de novo, não foi? – disse uma voz.
– Já vem você de novo? – respondi, não conseguindo disfarçar alguma irritação. – Por que sempre aparece nessas horas?
– E você achou que fosse encontrar quem por aqui, neste mato? O Coelho Branco? Agora é tarde, é muito tarde! – disse, olhando agitadamente para os lados com ar assustado, emendando então com um risinho sarcástico.
Um calafrio de raiva me correu o corpo e descarreguei-a chutando um pedregulho na impossibilidade de atingir meu companheiro de conversa. A verdade é que ele tinha razão. Era tarde. Minha namorada me deixara, eu tentei uma reaproximação, mas, apesar do diálogo amigável, as palavras ficaram entaladas na garganta. Não consegui expressar o que sentia, por mais tocante e verdadeiro que fosse.
– Aí você tentou ir pelas bordas, com medo de ir direto ao ponto, e ela acabou lhe escapando – disse ele, como se completasse o meu pensamento.
– Sim, pois nessa hora você apareceu e estragou tudo!
– Calma lá, meu caro! Menos! Pense bem: eu não disse nada, não fiz nada, você é que fez. Além do mais, nós dois estamos quase sempre juntos, não é mesmo?
– Para infelicidade minha... – disse eu, cabisbaixo.
Ele perdeu a calma e fez um gesto de desprezo.
– Ah, assim também é demais! Em todo esse tempo você ainda não se acostumou comigo? Não posso acreditar! E de quantas boas eu já livrei você?
– Sei lá – respondi, aborrecido –, não me lembro.
– Lembra, sim, eu não sou imagem e semelhança da sua memória, aposto como ela deve estar gritando na sua cabeça. Quantas vezes você estava pronto para soltar impropérios para o seu chefe e, na hora, você ficou calado?
– Que sujeitinho miserável, além de nos encher de trabalho, não pára de falar.
Ele então cresceu, com ar de vitória:
– Ah, eu não disse que você lembrava? – E, entre risos: – É verdade, não freqüento muito a praia do seu chefe, não gosto muito dele... mas não era disso que eu estava falando. Era das vezes em que o melhor é não dizer nada. Já na escola eu via você e, graças àquele jeito fechadão, calado...
Não resisti e revidei:
– Graças àquele jeito fechadão, calado, eu era o objeto das gozações. “Ah, pare de falar!”, “Não agüento mais ouvir a sua voz!”... Melhor, então, seria passar por bagunceiro e um dia fazer troça de alguém! Chega, chega, por que você não vai embora e me deixa um pouco em paz?
Ele sorriu, cordato:
– Experimente, então...
Interrompido o diálogo por alguns momentos, sentei-me num banco e minha visão escapou pelo meio das árvores, pelos caminhos, pelos paralelepípedos cinzentos que emergiam por trás do parque, num giro em busca de tranqüilidade. Quando voltei a visão para o lado que eu olhava antes, lá estava ele, sorrindo para mim. Levantei-me e reagi irritado, com os olhos fechados, as mãos nos ouvidos:
– Não, não, isso não pode ser, é uma tortura!
Quando vi, ele apenas contemplava a cena, batendo palmas, numa expressão cínica:
– Que espetáculo! Parece ainda aquela criança que não quer ouvir o que os pais dizem. Sabe de uma coisa? Você não tem jeito mesmo. Desisti de você. Sua namorada se foi porque ela prefere um sujeito de atitude, e agora a culpa é minha? As vezes em que eu estava lá, quando só em olhares vocês diziam tudo, você não lembra. Eu tentei ajudar, mas não adiantou. Se sua memória não lhe ajuda a trazer as palavras certas, meu caro, não posso fazer nada. Eu sou o seu silêncio, e agora você vai ter que aprender a conviver comigo.
Fiz um gesto, na tentativa de falar algo, mas ele se adiantou:
– Já disse: desisti de você.
Não consegui dizer mais nada. Saí andando, as mãos nos bolsos, e ele, calado, expressão séria, seguindo a meu lado, a uns dois passos de distância.

E o meu silêncio foi tão profundo que eu podia ouvir as folhas das árvores caindo.

(conto livremente inspirado na canção "Silence and I", de Alan Parsons e Eric Woolfson)

7.10.05

Angel

Mareja a doçura da alma
Ao raio que ataca o olhar –
Que, desenganado e com calma,
Responde: preciso amar.

Silêncio, não faças mais parte
Do dia, não tomes o ar
Nem da bela estrela a arte
De quem se encanta em cantar.

As asas de um anjo triste
Alegram-se de par em par
Corrente já não existe;
Liberta-te, sai a voar.

5.10.05

Patrício

– Tu és patrício?

A surpresa no meu "O quê?" certamente tornava desnecessária uma nova pergunta, mas ele gentilmente repetiu:

– Tu és patrício?

– Acho que não – respondi –, não que eu saiba.

Minha surpresa, na verdade, fazia muito menos sentido que a curiosidade do meu interlocutor, um empresário judeu que eu havia entrevistado. Afinal, aquela pergunta não era novidade para mim. O sobrenome engana. O tipo de rosto, alongado, com nariz meio avantajado, como têm também Ben Stiller ou Jerry Lewis, talvez enganem, ainda ajudados por meu cavanhaque... Tanto que eu já cheguei a me perguntar se meus ancestrais seriam judeus convertidos.

Pelo que sei hoje, é pouco provável. Mas, se fossem, isso não me incomodaria, pelo contrário. Foi com satisfação que descobri que, em meio à minha salada européia, tenho sangue indígena, confirmando o que ouvi, dez anos antes, do professor Moacyr Flores, numa excelente aula de História do Rio Grande do Sul.

Tenho simpatia pelo povo do Torá, embora pouco saiba a respeito. Nunca entrei em uma sinagoga, mas já fui a uma cerimônia fúnebre judaica. É incrível vê-los, tão brasileiros quanto eu, rezando em iídiche enquanto nós, cristãos, nada sabemos de latim. Cordeiro de Deus, tende piedade de nós...

Sempre ouvi falar também de sua união, sua disposição para se ajudarem mutuamente. Uma vez entrevistei o síndico de um edifício em que quase todos os moradores eram judeus. Ele não precisava contratar serviços de fora para o condomínio - contratava os serviços dos vizinhos. Essa "separação" pode parecer sectarismo, preconceito, mas, pensando bem, em nossa sociedade capitalista é cada um por si, ninguém está aí para nos ajudar.

Tenho mesmo simpatia por esse povo. Acho que os judeus deviam conviver pacificamente com os palestinos, que deveria haver na Terra Santa também um Estado palestino. Entretanto, é realmente admirável um povo ressuscitar uma língua morta, o que aconteceu com o hebraico no século XIX.

E quando descobri essa simpatia? Talvez tenha sido ao assistir ao filme "Tenha fé", uma estupenda comédia que mostra uma amizade inseparável entre um rabino (o Ben Stiller que eu citei) e um padre (Edward Norton, que também dirigiu o filme). E ao ver que tive, até hoje, algumas excelentes (embora poucas) amizades com judeus. Um de meus melhores amigos é judeu - apesar de ser pra lá de heterodoxo.

Sei lá, vai ver que, na parcela de sangue espanhol de minha mãe, havia alguma ascendência judaica - pois os judeus também tiveram importância na formação do povo espanhol, não foram só os árabes. Vai ver que eu tenho também algo de patrício, independentemente de sermos todos filhos de Noé. Contudo, ainda tenho muito a aprender sobre essa civilização. Pois, por coincidência, veio esta inspiração e eu nem sabia que anteontem era o dia do ano novo judeu.

Portanto, Hosh Hashaná!

4.10.05

Quases

Deixado em branco o papel
Quase inspiração
Local de encontro vazio
Quase pontual
A frase dita à metade
Quase se impôs
Amizade em teu adeus
Quase o coração

Bela flor que se encolhe
Moendo-se a si mesma
Por átimo faltou-lhe
Simples gota de chuva
E o pouco que murcha e definha
(num quase a vida desfaz-se)
É o pouco que aduba e renova
(num quase a vida renasce).

1.10.05

O nó da mudança

Cansei-me da dupla, quase tripla jornada. Chegou a hora de deixar o emprego no jornal. Nove anos bastaram. Reconheço, tenho muita sorte em poder dizer isto – mas cansei. Deixo, pelo menos por uns tempos, as palavras alheias para poder encontrar as minhas. Conseqüência, em parte, do mesmo sentimento que me moveu ao iniciar o blog.

Uma mudança como essa parece um longo corredor com uma porta ao fundo: por muito tempo vê-se, ao longe, a porta; mas, para atravessá-la, é necessário apenas um breve momento. Afinal, não é fácil deixar a profissão em que me enxergava desde a infância. Parece que somos diretores iniciantes nas mãos de um grande estúdio, e a vida e o acaso, produtores da película, nem sempre permitem que se mantenha o roteiro original. Mas prefiro considerar-me um diretor independente, rompendo as amarras com uma grande indústria de textos de 13 linhas, feitos para o leitor de hoje, que, infelizmente, não tem tempo para mais do que isso.


Mas não cuspo no prato em que me alimentei. Atravessar a porta de saída foi um momento estranho... e que também teve sua dificuldade.

Minha linha de tempo, mudando de direção, afastava-se (em definitivo?) das linhas dos meus colegas. E percebo, então, que esse tempo todo criou poucos pontos de toque entre as linhas. Tanto que a grande maioria conheceu minha decisão apenas na hora de sair. Alguns ainda não sabem até agora...

Alguns lugares-comuns, parabéns, felicidades, foi ótimo trabalhar contigo, as portas continuam abertas. Apenas uma colega diagramadora quis saber como me sentia e, com isso, conseguiu tocar mais fundo. Mas todos os cumprimentos foram sinceros, o coração vê a estima quando a encontra.

Por isso, a linha do tempo aos poucos foi se enrolando, enrolando, até eu perceber um nó, aqui, trancado. Duro foi segurá-lo... como é duro mudar o caminho! Mas a escolha estava feita, e eu só precisava segurar o nó por mais dez minutos, até estar em casa. Lá ele se desatou completamente, deixando então que a linha de tempo seguisse seu curso.