28.2.06

Um golpe de sorte?


Impossível não se perguntar se o fato de ter sido filmado na Inglaterra não contribuiu para que “Ponto final” (“Match point”) tenha ficado tão bom. Segundo o próprio diretor, a escolha de Londres e não de Manhattan para as filmagens foi menos artística do que financeira; no entanto, é inegável que a mudança de ares fez bem ao mais recente trabalho de Woody Allen. O cineasta, que raramente filma longe de Nova York, atravessou o oceano para contar uma história sobre amor, carência, traição, sorte e ilusão – ou melhor, sobre até que ponto alguém pode iludir aos outros e a si mesmo para manter uma determinada condição de vida.

Em “Ponto final”, Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers) é um jogador de tênis que decide trocar a carreira de competições por ensinar o esporte em clube da classe alta londrina. É lá que ele muda de vida novamente, pois conhece Tom Hewett (Matthew Goode) e sua irmã, Chloe (Emily Mortimer). O namoro e posterior casamento com Chloe acabam rendendo a Chris um emprego na empresa do sogro milionário, bem como uma paixão por Nola Rice (Scarlett Johansson), noiva de Tom.

Nessa partida de duplas que é o quadrilátero amoroso em que Chris se envolve, o jogo de tênis é apenas uma metáfora habilmente empregada por Woody Allen para discutir a importância de certos acasos em nossa vida – que podem ser (ou não) golpes de sorte. O cineasta joga também – e prega algumas deliciosas peças no espectador, prova de que, em seu 36º filme, Allen ainda não esgotou sua capacidade criativa, como poderia demonstrar a década em que ele ficou sem emplacar um filme digno de suas obras-primas dos anos 70 e 80.

Além da mudança de ares (e de sotaque, visto que o elenco, com exceção de Scarlett Johansson, é britânico), “Ponto final” passa ao largo das auto-análises verborrágicas que caracterizaram tantos filmes de Allen, mas mantém a tradicional qualidade da narrativa. Apoiado ainda em um elenco impecável, “Ponto final” deu a Woody Allen sua 14ª indicação para o Oscar de Roteiro Original (a última havia sido em 1998, por “Desconstruindo Harry”), além de quatro indicações para o Globo de Ouro – incluindo Melhor Filme (Drama), Melhor Diretor e Melhor Roteiro. Mero acaso? Provavelmente não.


foto: www.rottentomatoes.com

19.2.06

Cuidar do tempo

Já ouvi dizer, certa vez, que a única coisa verdadeira é o passado. Frase pesada, ela tocou-me – não por eu concordar com ela, mas porque convidava a uma reflexão. A primeira idéia, mais óbvia, era: o que se poderia dizer, então, do momento presente? Uma inglória luta do tempo, que, segundo após segundo, torna-se inexoravelmente passado? Ou, se de nada mais valem o presente e o futuro, por que nos preocuparmos em fazer deles um passado digno?

O próprio soar da frase parece arrastar-se, como se fosse dita por um velho carrancudo, de barba hirsuta e montando guarda a um baú de segredos. O tempo encerrado em si mesmo, não apresentando alternativa futura. Nada mais estranho à nossa época, voltada a um presente e um futuro cheios de possibilidades e conquistas. O passado que fique no passado, pois o que está por vir é sempre melhor. Pelo menos é o que os comerciais de TV não cansam em nos dizer.

Aí reside o perigo de se olhar para o futuro sem cuidar o passado. Estamos criando, pela televisão, pela publicidade, pelos modismos, um mundo despreocupado com o que fazemos, pois o que não deu certo ficou para trás – como se o futuro fosse capaz de se arranjar sozinho. Esse mundo, em uma palavra: irresponsável.

Um mundo de protoempresários nas salas de aula, mestres na arte da sedução no pátio da escola e pequeninos tiranos dentro de casa, pois desconectados do mundo real, a começar pelo contato com pai e mãe. Um mundo em que quem não for um realizado executivo será um esportista sarado e cheio de amigos felizes ou um destacado advogado, defendendo alguma empresa da maldita indústria da reclamatória trabalhista. Um mundo em que a filosofia, as relações humanas e a preservação do ambiente são menos importantes que a cor da estação, as formas legais de burlar a lei e quem vai para o paredão do Big Brother.

A velocidade da transformação em nosso mundo também aumenta a velocidade de desconexão com o passado. Se, conforme o IBGE, metade da população brasileira tem menos de 25 anos e 85% vive nas cidades, quantos de nós conhecem o tempo em que as famílias ficavam conversando nas varandas à noite enquanto as crianças brincavam na rua? Ou o tempo em que o filho do vizinho entrava em casa pulando o muro, o tempo em que se podiam contar as estrelas no céu?

Não é à toa que o passado parece desinteressar. Ele não foi vivido para que se saiba o quanto ele era bom em determinados aspectos. Se dizer que a única coisa verdadeira é o passado nos desconecta com a realidade, menos não acontece se negarmos o passado, pois deixamos de ver o quanto este mundo poderia ser melhor se não nos importássemos apenas com o presente e o futuro.

Não neguemos a tecnologia, os novos estilos de vida, a eterna dinâmica da cultura, das línguas, das artes. Mas não deixemos de lado as coisas simples, o romantismo, a história, a música, o pensamento, o pôr-do-sol, o sorriso, o contar as estrelas. Fazemos parte do tempo, passado, presente e futuro; descuidar dele seria descuidar também de nós mesmos.

14.2.06

O sentimento dos sentimentos

Algo se inquieta na fina e imperceptível linha que une o espírito, o cérebro e a mão. Essa linha começa a vibrar e, quando o tanger do espírito é compreendido pelo cérebro, às vezes a mão consegue traduzir o que ouviu – e vertem as palavras. Um inseto que se debate na teia da aranha? Pássaros que se agitam prenunciando a tempestade? O mar que recua avisando da onda que chega? Ora, quem dera esse grito fosse sempre escutado.

Porque é sempre maior a inquietude não percebida. Esta, a força-matriz da expressão – e muitas vezes também seu combustível – não encontrou quem a traduzisse, e o papel ficou em branco. Aprendo então que os sentimentos também têm sentimentos. Eles têm vergonha, medo, raiva, por vezes recusam-se a falar, aumentando em si mesma a inquietude. Por isso o autor calou-se tanto tempo. O náufrago deitou à água garrafas vazias e as poucas mensagens que mordiscaram a linha ou chegaram atrasadas, ou não se fizeram entender. Um monólito estava enterrado, enviando sinais fortíssimos, e eis que, uma vez desenterrado, nós, exploradores do espaço, quedamos ensurdecidos.

No entanto, algo faz sentido no que agora escuto, e a própria luz que apaguei se acende para mais um ou dois parágrafos. O que faltou foi determinação. A linha toca melodias diferentes conforme o compositor. Minha música ainda é tímida, parece sem vigor, sem emoção. É o sentimento dos meus sentimentos. Basta minha inquietude olhar para os lados mais firme, mais determinada, e verá que a poesia continua repousando ao lado; o milagre das palavras ainda está ali mesmo, esperando para acontecer.

11.2.06

O monólito

Catando inspiração para um texto de retorno, eu a encontro não em palavras, mas em notas musicais. Trilha sonora de “2001 – Uma odisséia no espaço”, “Requiem”, de Ligeti – um coro que serve de fundo para as aparições do monólito. E eu achando que se passariam eras até meus próximos escritos! Menos, menos. A realidade é que estava precisando de uma arejada. Já se passaram quatro anos inteiros daquele para o qual Arthur C. Clarke projetou uma viagem tripulada a Júpiter, mas muita coisa continua igual aqui no microuniverso.

Curioso que uma obra musical chamada “Requiem” tenha servido para os encontros entre o homem e aquela pedra misteriosa, que, no filme de Stanley Kubrick, parece estar presente nas grandes transformações na vida do homem – inclusive em um “renascimento”. Um contra-senso? Nem tanto: concebido antes de o homem ser o que é, o monólito parece ao mesmo ser de uma tecnologia que nunca alcançaremos. Ele absorve toda a luz que recebe, emite ondas eletromagnéticas e um som ensurdecedor e foi moldado nas exatas proporções 1x4x9. Uma das grandes idéias da história do cinema, pois, com a (diríamos hoje) modéstia dos efeitos especiais de “2001”, Kubrick pôs na tela um universo misterioso e criou um dos mais importantes filmes de ficção científica de todos os tempos, ainda instigante, após quase quarenta anos.

O que era o monólito? Provavelmente obra de seres inteligentes, mas o mistério que cerca sua existência, seu aparecimento e seu papel ao longo da “Odisséia no espaço” apenas confirma o que o próprio Kubrick afirmou: se alguém pudesse realmente explicar “2001”, ele, Kubrick, teria falhado. Afinal, não é um filme para explicar ou ser explicado, e sim para questionar nossas origens e nosso futuro.

1.2.06

Premonitória

Certas cenas de filmes que ficaram esquecidas tornam-se cômicas, ou no mínimo curiosas, após certo tempo. É o caso de uma que vi em "Impacto profundo", que em janeiro a televisão reprisou pela enésima vez. Quando um Elijah Wood ainda adolescente propõe casamento a sua namorada, interpretada por Leelee Sobieski, a câmera enquadra a mão de Elijah se abrindo para mostrar dois anéis. Tomada praticamente idêntica à que Peter Jackson filmaria três anos depois, em "O senhor dos anéis" - só que, claro, com um anel apenas. Premonição de um, cópia de outro ou coincidência?