29.5.06

Não penses que não

Os pés delicados do inseto pousaram
Deixaram meu sonho e um ar colorido
Num vôo que só a lembrança imagina
Os dias quais chuva que bate à janela.

Buzinas e vozes na teia de cinza
Concretam no asfalto o afeto e a resposta
Escravos que são dos ponteiros do mundo
Saudade que inspira mas não se abate.

Candura, não penses que nunca me lembro
Do doce perfume das linhas traçadas
Apenas não quero que o tempo se faça
Minúsculo ponto ao sul de algures.

(Coda)
See no strings,
I see wings
When you fly -
butterfly.

18.5.06

When he's sixty-four

Não sou muito ligado em fofocas, principalmente as do meio artístico, mas uma, divulgada ontem, me interessou por mexer com meu imaginário. Quando, na adolescência, fui apresentado aos Beatles, uma divertida e irônica canção do álbum “Sgt. Peppers” projetava um futuro até então remoto:

Will you still need me,
Will you still feed me,
When I’m sixty-four?

Uma entrada a dois na terceira idade, com cartões no Dia dos Namorados, viagens no verão e uma vida pacata, incluindo tricotar suéteres e arrancar as ervas no jardim, era pintada por Paul McCartney em "When I'm sixty-four”. "Quem poderia pedir mais?", espeta a letra da música. E eu sempre me perguntava: como seria quando Paul chegasse a essa idade? Ontem, exato um mês e um dia antes de o ex-beatle completar 64 anos, ele decidiu se separar de Heather Mills, com quem estava casado desde 2002.

Oficialmente, o casal se separou devido a “intrusões da imprensa” na vida particular. Entretanto, mais irônica que a canção – “Se eu só voltar às quinze para as quatro/ Você trancaria a porta?” – é a informação de que diferenças no estilo de vida teriam contribuído para a separação: Heather insistia em seu trabalho em campanhas de caridade, enquanto McCartney procurava justamente a vida caseira cantada (e questionada) em “When I’m sixty-four”.


A vida imita a arte? Ou esta é que já previa uma realidade que a vida acabaria provando quase 40 anos depois?

11.5.06

Um pequeno milagre


Atada por esparadrapos a uma mesa, em posição de crucificada, está uma mulher. É a minha mulher. Ela está acordada, mas não sente nada ao lhe abrirem o ventre. A cena, brutal, parece de filme de terror, mas, na realidade, acontecia em função de um pequeno milagre. Eu estava lá. E eu me sinto privilegiado porque pude ver esse milagre; porque nem todos conseguem resistir, in loco, até o fim. Presenciar o multiplicar da vida é chocante. Um momento tão especial que me vinham faltando as palavras para descrevê-lo.

Algumas horas mais tarde, esse pequeno milagre abriria seus olhos brilhantes e acinzentados, provavelmente sem poder enxergar ainda direito, e sem saber que era o centro das atenções. A esse pequeno milagre, decidimos chamar Luísa – um nome bonito, nome de uma grande amiga, nome que significa “guerreira”. Minha filha. Há tão pouco chegou, e essa diminuta guerreira já havia conquistado o reino de nossos pensamentos. Frustrações, alegrias, inseguranças, contentamentos, irritações, sonhos... sentimentos tão variados sei que teremos por sua causa; mas o 26 de abril, dia desse pequeno milagre, foi um dos mais felizes de minha vida.

9.5.06

Outonal nº 2

Andando por uma rua cinzenta de maio, percebi que o mesmo céu encoberto que apressava a noite deixava no peito uma estranha sensação, ao mesmo tempo calma e agoniada. Era outono, terra em que, ao sul do Trópico de Capricórnio, os dias se tornam cada vez mais curtos – e os espíritos mais introspectivos encontram, ao olhar à janela, o seu espelho.

No calendário da Revolução Francesa, os meses do inverno tinham som pesado e compasso longo (nivoso, pluvioso, ventoso). Mas esse som comprido e fechado, no português, não está no nome do inverno, e sim no do outono. Ou-tonnn-no. Som cavo, retumbante, de porta que bate, de casa vazia; de tempo fechado, de coração contrito.

Deu-se ao outono uma idéia triste, de morte, decadência: o outono da vida. O outono sempre foi o oposto da primavera; o primo pobre da estação das flores e dos amores. Não importa em qual estação se tenha nascido, sempre será perguntado quantas primaveras alguém completou. Como se tivesse nascido na primavera – ou como se o nascimento fosse, em qualquer mês, a primavera da vida.

Vejo o outono com outros olhos. Outono, a época da frutificação, sempre foi, para mim, vida e alegria. Nasci no terceiro dia de um outono. Mesma estação do ano em que nasceram minha mãe, meu irmão e minha filha. Mesma estação, neste hemisfério, em que se comemora a Páscoa – o dia do renascimento.

Chocolates à parte, lembro a Páscoa sempre como uma tarde de domingo ensolarada, nem fria, nem quente, na casa de meus avós. Não é à toa: em Porto Alegre, março e abril costumam ser meses de pouca chuva e dias bonitos, reforçados por um Sol oblíquo que deixa as cores mais vivazes. E os dias curtos valorizam ainda mais essas poucas horas de luzes e cores.


Quando as nuvens encobrem o céu, como naquela cinzenta rua de maio, é inevitável que as poucas horas de sol (em muitos dias nenhuma) deixem no coração um traço de melancolia. Mas aí também o outono frutifica: nessa hora os espíritos introspectivos sentem-se mais à vontade para se expressar – e a melancolia se faz poesia.

6.5.06

Fiquei bamboocha

O novo sempre vem, já cantava Belchior, mas... será que só porque é novo é melhor? Pelo menos é uma idéia da qual não podemos escapar, desde que o fogo foi descoberto e a roda inventada: tudo que é novo ou desconhecido chama a atenção. O princípio da curiosidade humana! O “x” da questão é por quanto tempo essa atenção será mantida. E a tolerância que nós, consumidores, temos apresentado a esses produtos ditos “novos” acaba criando uma roda-viva, pois quanto mais rápido descartamos um produto novo, mais rápido o mercado cria produtos novos novos.

Nem todo produto precisa ter a durabilidade da garrafa da Coca-Cola ou do logotipo da Nestlé ou da Ford. Nem todos precisam atravessar os séculos. Mas já há algum tempo essas mesmas antigas empresas vêm criando não imitações de outras marcas, nem produtos diferentes, nem tampouco embalagens novas para o mesmo produto, mas produtos em que o “novo” baseia-se no antigo para que o público creia em seu “novo” valor. Em outras palavras, auto-imitações.

Nem se fale em programas de televisão ou modelos de automóveis (alguém aí sabe identificá-los?). O ramo da alimentação parece ser o campeão. A finada Cherry Coke foi um sinal do que estava por vir. Tempos depois, elefantes coloridos desfilavam na propaganda da “Fanta sabores” – como se laranja e uva não fossem também sabores.

Daí em diante, virou moda as empresas imitarem (e mal) a si mesmas: Bis Lacta sabor laranja, Sonho de Valsa branco, Prestígio sabor chocolate (!!!!)... Qualquer dia a Lacta me vem com um Galak preto. Não, eu não duvido de nada. Tanto que a Coca-Cola conseguiu inventar a Fanta sabor laranja vermelha. Alguém ficou bamboocha, ou eu ou alguém lá da fábrica.

Essas imitações, aposto, não sobreviverão muito tempo, porque inferiores aos produtos originais. O “novo” sempre chama a atenção do consumidor, ansioso para experimentar algo diferente. Mas as verdadeiras boas idéias são minoria, e isso vale também no mundo das marcas e dos produtos.

Por sinal, tomar Fanta e ficar bamboocha... ainda não faço idéia do que isso significa. Mas deve haver qualquer coisa nessa fórmula, temos que investigar.

4.5.06

Os olhos de Winona

Por onde andará Winona Ryder?

A pergunta me veio por um fato absolutamente prosaico. Em um ônibus, entre tantas pessoas a se espremerem no corredor, reparo em uma adolescente: não é só o mesmo jeito espivetado, agitado; ela é realmente parecida com Winona – em especial pela característica mais marcante naquela talentosa e bela atriz: os olhos. Será que a moça faz idéia disso?

Talvez não. A virada de milênio não foi nada boa para Winona, e todos os seus grandes sucessos ficaram na época da infância daquela mocinha. Época essa em que eu recém começava a me tornar cinéfilo e não me considerava ainda fã de artistas de cinema. Entre as atrizes, mais tarde, acabei me tornando fã de algumas: Claire Danes, Cate Blanchett, Scarlett Johansson... a primeira de todas, entretanto, foi Winona Ryder, porque aqueles belos olhos, escuros, grandes e expressivos, pareciam atuar junto com ela.

Olhos curiosos das adolescentes que ela interpretou em “Os fantasmas se divertem” e “Edward Mãos de Tesoura”; olhos determinados de go-getter, mas ainda com alguma inocência, das jovens de “Adoráveis mulheres” e “As bruxas de Salem”; olhos doces da moça que está ampliando seus horizontes em “Colcha de retalhos”.

Entretanto, por algum motivo, depois de trabalhar com Tim Burton, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese e de receber duas indicações ao Oscar, os olhos de Winona têm brilhado menos, assim como sua estrela. Envolveu-se em escândalos, foi presa por roubo, foi indicada à Framboesa de Ouro... na última vez que a vi, em 2002, em “Simone”, ela interpretava, ironicamente, uma atriz que abandona as filmagens – e era coadjuvante de uma atriz virtual. Olhos furiosos, mas sempre belos e expressivos.

O trabalho mais recente de Winona se chama “A scanner darkly”, uma animação de ficção científica que deve estrear no Brasil em agosto. Richard Linklater na direção e Keanu Reeves como protagonista prometem. Quem sabe esteja aí uma oportunidade para Winona Ryder brilhar de novo nas telas – e aquela mocinha descobrir como seus olhos se parecem com os de Winona.


(foto: www.kaputz.com)

3.5.06

Operação mãos limpas


Por esta o Lula não esperava. Duas semanas depois de o Brasil atingir a “auto-suficiência” na produção de petróleo, tão martelada em publicidade da Petrobras, o governo de Evo Morales decide nacionalizar o setor petrolífero e de gás na Bolívia, o que quer dizer: todas as empresas estrangeiras que exploram petróleo e gás natural naquele país terão 180 dias para se submeter ao decreto – ou deixar o solo boliviano. E a maior dessas empresas é justamente a Petrobras, que responde por 15% do PIB da Bolívia. De tão grande, nossa maior estatal assumiu ares de multinacional privada, pois, é claro, não lhe agradaram as medidas do presidente Evo Morales, provando que a pimenta na boca dos outros arde menos.

O governo brasileiro já deixou bem claro que, se a auto-suficiência pode economizar dólares com importação de petróleo, isso não vai fazer diferença nenhuma no nosso bolso: os preços são regidos pelo mercado global e não podem ser reduzidos só por causa da auto-suficiência. Então, que valor efetivo ela tem? Apenas o dos dólares antes gastos na importação, que ficam em Brasília mesmo, à disposição para mordomias ou projetos de lei em ano eleitoral. Em que pese o fato de que essas verbas não saiam do Brasil, esta é uma auto-suficiência tão de fachada quando aquele evento comemorado todo dia 7 de setembro.

Enquanto o exército boliviano ocupava as instalações da Petrobras no país vizinho, o presidente da estatal, José Carlos Gabrielli, reagia, considerando “unilateral” e “inamistosa” a atitude de Evo Morales. Uma iniciativa nacionalista séria, um golpe de marketing ou um lance populista, como vem dizendo a imprensa internacional? De qualquer forma, uma interessante oportunidade para acompanharmos a diplomacia do governo brasileiro diante de uma saia-justa. Se ele defender unicamente os interesses da Petrobras, põe em jogo os ideais de soberania que sempre foram bandeira do PT. E mais de 50% do gás natural que o Brasil consome vem da Bolívia – seu fornecimento poderia ser comprometido se houvesse um atrito econômico entre os dois países.

Por isso foi convocada uma reunião de emergência entre Lula, Evo Morales e os presidentes da Argentina, Nestor Kirchner, e da Venezuela, Hugo Chávez. Prudentemente, o governo brasileiro divulgou ontem uma nota defendendo o direito soberano da Bolívia de nacionalizar as riquezas do seu subsolo. Pelo menos isso, senhor presidente. Senão, o gesto das mãos sujas de petróleo, repetindo o de Getúlio Vargas em 1952, quando a Petrobras havia sido recém-criada, cairia no vazio.


(foto: Último Segundo/Agência Brasil)