23.6.07

Luísa e eu

Serenos, os olhos dela repousam enquanto os meus se descobrem de novo embevecidos, como em nosso primeiro encontro – e nem parece que isso se deu já há mais de um ano. Agora, que a idade de Luísa supera e muito o tempo que esperamos por ela, agora, dizia eu, é ela que espera por nós.

Dormindo, ela espera (mesmo sem ter noção disso) que, ao acordar, possa receber alimento, amor, conforto, lazer, estímulo – a atenção de que necessita. Em retribuição, vai nos mostrar alegria, vitalidade, crescimento, curiosidade – e, ao dormir, a mesma serenidade que vejo agora.

Luísa dorme sem desconfiar de todo o esforço que foi necessário para que ela estivesse neste mundo, neste texto. E é por isso que às vezes me pego embevecido: um pequeno protótipo de gente que, antes mesmo de engatinhar, já nos dava mostras de atenção, esperteza e encantamento com o universo que a rodeia e já reconhecia o próprio nome quando era chamada.

Vejo hoje que cada hora que se adiou o descanso ou o sono (a começar pela madrugada em claro que foram suas primeiras horas de vida) foi dada a Luísa, para que pudesse dormir assim, serena, e, de manhã, mostrar um sorriso que nada no mundo pode pagar. Vejo hoje que, embora não seja condição indispensável – eis que o amor paterno existe e é também incondicional –, enxergar-me em pequenos detalhes como o feitio dos dedos de Luísa ou em certas expressões de seu rosto reforça meu apego a ela e o sentimento de perenidade e de perfeição da ordem das coisas.


Os dias são diferentes desde que ela chegou – mais curtos uns, mais cansativos outros, mais tensos até. Mas dedico a Luísa estas linhas, pois têm sido dias também de aprendizado e de descoberta, inclusive de que, após seu nascimento, Luísa e eu, filha e pai, passaram a ser.

20.6.07

O público duplo

A não ser que alguém tenha chegado atrasado, eram duas as pessoas assistindo a “O homem duplo” (A scanner darkly), hoje à tarde na Casa de Cultura Mario Quintana. Quase sessão privativa, nunca havia visto um público tão pequeno. Muito não se podia esperar de um horário vespertino, em dia de semana, mas ainda assim é frustrante ver o público que resta para um filme inteligente, de qualidade – e, principalmente, que foge do mainstream cinematográfico.

Num futuro próximo, em que quase mais nada escapa à monitoração da polícia, Keanu Reeves é um agente que recebe a missão de investigar a si mesmo por causa do vício em uma poderosa droga, que altera a noção de realidade do usuário. Para recontar a surpreendente história escrita por Philip K. Dick (o mesmo autor das histórias de Blade Runner e Minority Report), o diretor Richard Linklater aplicou uma animação – denominada rotoscopia digital – sobre as imagens filmadas, criando uma atmosfera psicodélica e em constante e incômodo movimento.

Temas como drogas, criminalidade, auto-identidade, decadência da sociedade, poder das grandes empresas, controle da informação e da vida privada fazem de “O homem duplo” uma história muito mais real e atual do que a tecnologia fictícia do filme poderia sugerir. Mas, em tempos de Shrek e Piratas do Caribe, quem quer ver um filme sério e ainda com um visual perturbador? Revejo nos jornais que o filme de Linklater estreou em Porto Alegre no dia 8, praticamente junto com o lançamento nacional do DVD. Se mesmo a vida dos arrasa-quarteirão tem sido curta, alguma chance de que “O homem duplo” sobreviva a esta quinta-feira?

17.6.07

Carta

Um feliz encontro entre minha mãe e um de seus ex-alunos deu origem a um depoimento que Sean, o ex-aluno e hoje excelente amigo meu, fez público em seu blog. Agora reproduzo a carta que a professora Maria Silvina, minha mãe, escreveu em resposta ao depoimento.

Sean,

Eu não poderia te deixar sem resposta, uma vez que trouxeste à tona sentimentos que me acompanham há quatro décadas – a saudade de meus tempos de bibliotecária.

Como não sou versada em computação, faço do meu filho e teu amigo, Renato, o portador das minhas palavras em seu blog.

Desempenhei funções de professora bibliotecária durante vinte anos e o fiz convicta da minha missão – cativar o aluno para a leitura. Tenho consciência da minha dedicação e amor, posto que eu adorava o que fazia, mas nunca parei para pensar em como e quanto germinariam as sementes que eu plantava. Entretanto, tenho recebido, ao longo dos anos, alguns depoimentos que me fazem considerar o valor do meu trabalho e agradecer a Deus a inspiração e a força que Ele me deu. Esta mesma conduta tive com meus filhos, Renato e Rogério, que, nas palavras de uma professora amiga, eram verdadeiros “ratinhos de biblioteca”.

Sean, como foram significativos o teu abraço e as tuas palavras quando nos encontramos na festa de 1 ano da minha neta! E eu achando que nem te lembravas de mim!!! Tua atitude tocou profundamente o coração desta “taurina chorona”! Mas afirmo-te, com certeza absoluta, que a tua mãe – a incansável Farisa, que conheci como atuante dinâmica no Clube de Mães da nossa escola – foi a primeira e principal responsável por essa postura de reconhecimento e gratidão que hoje demonstras. Sensibilidade como a que possuis, reforça-me a crença de que o mundo ainda não se deteriorou.

Obrigada, meu querido Sean, pela alegria que me proporcionaste! Obrigada também aos teus amigos pelos comentários elogiosos!

Que bom que és amigo do meu filho!

Parabéns a tua mãe que te criou tão bem! O meu abraço a ela e um beijo para ti da professora amiga que te deseja muito sucesso na vida.

Maria Silvina

11.6.07

Memória cinematográfica

Numa tarde dessas, uma tia de minha mulher comenta que havia visto na TV um filme com Al Pacino – mas qual era mesmo o filme?, pergunta ela, agora não lembro. Radar acionado ao ouvir o nome de um dos meus atores favoritos, bastou ela dizer que Pacino fazia um detetive que ia para o Alasca para eu responder: deve ser “Insônia”.

Poucas vezes tenho a resposta assim na ponta da língua, mas dessa vez tive sorte no quiz a que a tia sem querer me submeteu, talvez por causa de uma piada. Quando “Insônia” estava nos cinemas e eu disse no trabalho que o cineasta (Christopher Nolan) era o mesmo de “Amnésia”, meu chefe disse que o filme seguinte do diretor deveria se chamar “Enxaqueca”.

Infâmias à parte, pequenas circunstâncias como essa abrem na memória lugar para uma informação. Esse mesmo “Insônia” foi um dos filmes que marcaram, em 2001, minha autodescoberta como cinéfilo (um pouco mais dessa história eu conto aqui). Mas já bem antes disso eu percebi que minha memória, traidora quando o assunto é diálogos, piadas ou decoreba, poderia fazer as pazes comigo em frente a uma tela de cinema.

Era 1995, e eu assistia ao made for Sessão da Tarde “Lancelot – O primeiro cavaleiro”. O herói era Richard Gere, e o rei Arthur, ninguém menos que Sean Connery. Mas onde diabos eu havia visto antes o príncipe Malagant, vilão da história? Essa pergunta me martelou até quase o final do filme, quando de repente, como se Charlton Heston houvesse erguido os braços em frente ao Mar Vermelho, minha memória encontro o caminho para a informação perdida: o vilão era Ben Cross, um obscuro ator inglês de TV que fez o papel principal em “Carruagens de fogo”, filme que adorei. Era ele mesmo, 14 anos mais velho, um pouco mais gordo e um bocado mais sujo, pois as justas não eram mais em uma raia olímpica.

Daí em diante, comecei a me divertir tentando encontrar, apenas pela fisionomia, aqueles artistas que, como não nasceram para ser Roberto DeNiro, Brad Pitt ou Angelina Jolie, ficavam esquecidos, perdidos no meio do elenco, muitas vezes injustamente. Assim reencontrei na tela velhos amigos, que eu via de vez em quando e nem notava.

No diretor de prisão em “À espera de um milagre”, reencontrei o mesmo James Cromwell que foi o fazendeiro de “Babe”. “Bom porco”, ele dizia. Na mortal e estonteante Gail de “Sin City”, estava Rosario Dawson, aquela menina morena de “Kids”. E, em “O senhor dos anéis”, o decrépito rei Théoden não me era estranho; pudera, cinco antes, vi Bernard Hill afundar dignamente com o navio em que era capitão – o “Titanic”, nenhum outro. Isso sem contar o meio-elfo Elrond, ao qual faltavam apenas o paletó e os óculos escuros, não é, mister Anderson?

Tudo cultura inútil? Não, pois passei a olhar de forma diferente para a tela. Além de abrir novos espaços em minha memória, reforço a certeza de que o cinema não é apenas meia dúzia de grandes astros. Mais inútil é saber com quem está Leonardo DiCaprio ou a última extravagância de Tom Cruise. O talento também pode estar naqueles coadjuvantes ou mesmo nos figurantes, que nunca receberam da indústria a oportunidade certa para fazer parte da memória cinematográfica e por isso permanecem esquecidos.