28.8.07

A primeira viagem


“Se fazer cinema é loucura, fazer animação é cretinice.”

A frase, escrita a giz nas costas de um quadro-negro já vão dezesseis anos, ainda está lá, conservada pela superfície áspera que a recebeu. O tom debochado da frase também é uma ironia, já que serviu de “moral da história” para um filme de animação no qual tomei parte. Nessa empreitada também estavam André Grassi e Leandro Steiw, então colegas de Jornalismo e grandes amigos meus até hoje. Essa foi minha primeira experiência com cinema... uma “brincadeira” em super-8 que custou longas tardes desenhando bonequinhos e cenários sobre papel vegetal e fotografando-os quadro a quadro, mais uns seis meses esperando que os rolos voltassem da França, pois no Brasil nenhum laboratório mais fazia a revelação da bitola.

Fazer cinema, então, não é uma loucura?

Talvez não a loucura dos que perderam a razão, e sim a razão de ser de alguns tidos como loucos. Cinema é um empreendimento complicado, demorado, de risco – e ainda caro, mesmo com a diminuição de custos pela tecnologia digital. Os telefones celulares acenam de novo com a possibilidade de se fazer cinema com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, mas, quanto mais público quisermos para o filme, maior a estrutura necessária. Filme feito em celular não leva Oscar, Palma de Ouro ou Kikito. Pelo menos por enquanto.

Apesar disso tudo, o lado aparentemente desarrazoado dessa loucura parece indispensável na carreira de um diretor. Cinema também é criatividade, improviso, maleabilidade. Cineasta tem que ser meio McGyver. Se ele esperar uma grua ou um dolly à disposição para começar, talvez não comece nunca. Houvesse muita ponderação ou “crises de realidade” e eu não teria escrito, filmado e apresentado publicamente, quinta-feira passada, “Café cortado”, meu primeiro curta-metragem.

Digo eu, mas o mérito é de cada participante dessa experiência de fazer cinema. Se por um lado dispusemos de profissionais na fotografia, na edição e em cena, além de uma boa câmera e bons programas de edição, por outro foi necessário pensar no filme como um fim e não como um meio, improvisar o tempo todo e, acima de tudo, aprender fazendo e errando. Se cinema já é uma pressão, imagine saber que só haverá uma oportunidade para usar a locação. Na hora algumas soluções aparecem, como um extensor de vassoura para servir de haste para o microfone boom – ou papel vegetal forrando o balcão de vidro para eliminar reflexos. Mas alguns erros são descobertos apenas na edição, quando já é tarde demais.

Quinze meses produzindo um filme de três minutos e meio. O que se ganhou com essa loucura? Fama, dinheiro? Não, vontade de fazer mais. De consertar os erros, de mostrar que se aprendeu alguma coisa e de, a cada produção, romper uma nova barreira. Cinema é um esporte radical. Está para as fotos de férias como o surfe está para a planonda. O desafio que ele faz à nossa liberdade é irresistível.


Posso não conseguir filmar as idéias que tenho para roteiros, posso, ainda, encarar o ação e o corta como mero hobby. Entretanto, não era o que sentia tendo ao meu lado, quinta-feira passada, a equipe do “Café cortado”, o brilho nos olhos de cada um apenas dizendo “nós conseguimos”. Apenas um pequeno passo, mas o primeiro, como o de toda viagem. Uma louca e, para os que amam o cinema, indispensável primeira viagem.

(Na foto: Lúcia Azevedo [diretora de produção], Nádia Prestes [editora], Cláudia Elisabeth Ramos [assistente de direção], Patricia Suri [atriz], Tito Ravaglia [ator], Fernando Telles [desenhista de produção] e Renato Wolff [diretor]. Foto: André Grassi)

3.8.07

Depois

Uma porta se fecha. O vento muda de direção, uma amizade se precipita sobre si mesma – e assim, no más, as pessoas passam. Tão inexplicável quanto a vitória da vida (ou a da morte), e ainda mais imprevisível, é o mecanismo da amizade. Afeição, empatia, amor tantas vezes, trocam-se por milhares de quilômetros, bastando apenas uma linha telefônica e um quebra-cabeça que o imaginário monta com peças lidas, vistas e ouvidas, mas nunca tocadas. Um jogo flexível nas regras e inquebrantável nos princípios, em que os contendores se respeitam em seus tabuleiros de tempo e espaço.

Outros mecanismos subitamente falham, contudo, mesmo a uma distância de poucos quilômetros ou até de poucas quadras. O tempo que confirma por que o coração ainda sorri ao ver aquele amigo de infância – esse mesmo tempo mostra como aquele outro amigo na verdade era. Tornamo-nos então exigentes e passamos às vezes por intransigentes, insensíveis, mesquinhos. Não foi aquela dívida que desfez uma amizade de 15 anos; foi a falta de lealdade. Nem foi birra gratuita que afastou outra amiga de há tempos; foi a falsidade, o descaso.


Dia desses, passei por um afastamento anunciado. Uma excelente parceria para tantos assuntos e visões do mundo, mas recentes estremecimentos mostravam contendores com tabuleiros de tempo assaz diferentes. Então, a amiga de cabelos negros, palavras azuis e dias infelizmente opacos decidiu calar-se. Tornará a falar? Quando? É impossível ficar indiferente. Mas aprendi mais um pouco sobre esse delicado e às vezes imprevisível mecanismo, mesmo depois de vê-lo falhar. Que, como na vida e na morte, estamos sozinhos com nossos valores quando não somos compreendidos. Ninguém no mundo sabe o tamanho exato de uma decepção.