8.3.08

O Mestrezão

Na terça-feira passada, foi-se um símbolo do ensino da língua portuguesa. O professor Edison de Oliveira, famoso por suas aulas bem-humoradas, faleceu aos 73 anos, de insuficiência cardíaca. Trabalhou na PUC, em cursinhos pré-universitários e tinha o seu próprio curso de Português. Seus livros eram verdadeiros vade-mécuns para as dificuldades mais comuns que temos com a gramática, cheios de ilustrações engraçadas que ajudavam a entender as regras. Lembro bem algumas, como aquela que diferenciava “comer à mesa” e “comer a mesa” – o indivíduo devorando a tábua não deixava esquecer que a crase era necessária, sob pena de indigestão.

Tive o privilégio de ser aluno do professor Edison – quatro meses de aulas no Universitário, em que o Mestrezão, como ele mesmo se intitulou, ajudava a perpetuar o folclore dos cursinhos. “Mestrezão” por causa de sua meia-dúzia de cabelos no peito, que ele fazia questão de mostrar em aula e que o tornavam “irresistível” para as mulheres. Entre trejeitos, caretas e piadas, tudo servia para que ele exercesse seu grande talento – ensinar nossa língua. A começar pelo próprio nome, que ele enfatizava, estava errado, porque registrado sem um acento agudo no “E” de Edison.

Ele optou por uma maneira anticonvencional de ensinar por achar que o bom humor e o lúdico facilitam a compreensão de uma linguagem cheia de regras e de exceções – e que, diga-se de passagem, é muito mal ensinada em nossas escolas. Irreverente no método, mas ferrenho defensor da língua portuguesa. Lembro muito bem o Edison em programas de TV, subindo numa escada, na rua, para repintar placas em que havia erros de português.

O Mestrezão vai fazer falta. No âmbito de Porto Alegre, ele tinha a popularidade que o professor Pasquale Cipro Neto tem no país, como destacou certa vez a revista
Veja. No entanto, o site do Universitário não dedicou uma só linha ao Edison, que recebeu o título de Professor Emérito do Rio Grande do Sul. Espero que o trabalho dele não caia no esquecimento, pois, se ainda é necessário um batalhão de Edisons para corrigir as crases erradas nas placas de nossas estradas, é porque precisamos de outro batalhão nas salas de aula, ensinando e ajudando os brasileiros a amar a língua portuguesa.

Leia aqui a matéria publicada em Zero Hora. Aqui, pérolas do Edison, relatadas pelo professor Geraldo Fulgêncio.

2.3.08

Onde os filmes fracos não têm vez

Dizem que, quando a fome é grande, a comida fica mais gostosa. Essa assertiva não vale para a sétima arte. Na tentativa de compensar o atraso do ano passado, voltei aos cinemas, mas com freqüência tenho sentido uma estranha insatisfação ao sair da sala. Mais estranha ainda porque a falta de tempo me obriga a escolher melhor os filmes, ou seja, nada de dramas ralos, comédias açucaradas ou ações hollywoodianas um-contra-todos. Às vezes me permito alguma fantasia, gênero que admiro, e mesmo assim, nos últimos tempos, o impacto tem sido pequeno. “Eragon” foi um desperdício de talento e dinheiro. “A bússola de ouro” caprichou no figurino e na direção de arte, mas não contagia. Nem a mágica de Harry Potter, que parece esgotada após cinco filmes, tem salvado a pátria. Será uma síndrome de “Senhor dos anéis”, my precious? Quando fui realmente gostar de uma fantasia – “O labirinto do fauno” –, ela era pano de fundo de um drama mais que real.

Apesar de meu gosto pelo cinema alternativo, arrisco às vezes um arrasa-quarteirão – e os heróis dos quadrinhos têm tido minha preferência. Mas, de novo, os resultados deixam a desejar. O roteiro débil do segundo “Quarteto Fantástico” não convenceu – e ainda perdeu a chance de aproveitar o potencial do Surfista Prateado, um personagem fascinante. O Homem-Aranha, por sua vez, está se tornando tedioso, entre novos vilões e o velho amor de Mary Jane, na pele da cada vez mais insossa Kirsten Dunst. Histórias mais profundas, com heróis (ou não) mais humanos e visual mais obscuro, contudo, têm se salvado, caso de “Sin City”, “300” e, claro, o Batman ressuscitado honrosamente por Christopher Nolan oito anos após a gelada protagonizada por Schwarzenegger e dez depois da bat-bunda de Val Kilmer.

Por que aquela sensação de admiração e êxtase ante a obra de arte (ou de pura e verdadeira diversão) tem sido cada vez menos freqüente quando vou ao cinema? Tem sido cada vez mais difícil dar uma nota 8 (ou superior) para um filme. Será que estou ficando velho e pessimista? Ou mais chato, pois não me deixo divertir, enquanto Roger Ebert, o guru dos críticos, parece gostar de quase tudo que vê? Nos últimos anos, poucos filmes me causaram uma grande e verdadeira admiração, fixando-se indelevelmente na memória. “Hotel Ruanda”, “V de vingança”, “Crash”, “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, “Match point”, “Cartas de Iwo Jima”, “A vida secreta das palavras”, “Closer”... e não muitos mais. And so it is, diria Damien Rice.

Na semana passada, contudo, mais duas vezes saí admirado do cinema. De novo, temáticas complexas. “Onde os fracos não têm vez” mereceu os Oscars que recebeu. O título em português é injusto para com o plot do filme, mas isso é mero detalhe. O que importa é o suspense minimalista criado pelos Coen, sem ajuda de música, noites tempestuosas ou ombros detidos por mãos que surgem do nada; em pleno dia, Josh Brolin, armado, descobre-se no meio do deserto, cercado de camionetes, cadáveres e dólares, e a cena é muito mais tensa que ver uma adolescente indefesa apavorada por um maníaco em uma casa escura. Isso sem contar o olhar fixo e implacável de Javier Bardem, qual uma morte ambulante que, em lugar de foice, carrega um maçarico. A violência que o personagem de Bardem representa e que move o filme, como a violência que sofremos hoje em dia, não se sabe mais de onde vem nem para onde vai. Esse desencanto, nos olhos cansados do policial interpretado por Tommy Lee Jones e que está no encalço do assassino, torna universal um filme que à primeira vista poderia parecer um convencional faroeste moderno.

Se eu havia gostado do novo trabalho dos irmãos Coen, mais ainda me agradaria “Sangue negro”, um filme mais de ator do que “Onde os fracos não têm vez”, mas nem por isso menos admirável. Contando a história de como um minerador, após cavar sozinho seu primeiro poço, tornou-se um magnata do petróleo na Califórnia, o diretor Paul Thomas Anderson lança um olhar crítico sobre como os Estados Unidos se tornaram o que são. A ambição, a determinação e a falta de escrúpulos são lei na vida do personagem do britânico Daniel Day-Lewis, numa interpretação devastadora que faz valer cada um dos poucos filmes em que ele tem atuado. Day-Lewis também encarnou, à sua maneira, a violência – desta vez, contra aqueles que se interpuserem entre a sociedade norte-americana e seus objetivos de riqueza e domínio, mesmo que sejam instituições como a igreja e a família.

Sim, acho que estou ficando chato em relação a filmes. Chato e hiper-realista. O hábito de vê-los me fez mais exigente em termos de fotografia, direção, interpretação, facilitando a identificação de um filme mediano. E as histórias que os filmes contam? Ainda posso me encantar por uma aventura, uma fantasia, uma comédia, mas um toque de realidade, nua e crua, se mostra necessário. Afinal, sinto-me um humanista, e as mazelas na sociedade, nas relações interpessoais ou no psicológico, uma vez expostas, elas
mesmas ou por meio de metáforas, criam possibilidade de que um dia sejam tratadas. Nada existe até que seja conhecido, e o cinema, embora poucas sejam as histórias verdadeiramente originais hoje em dia, é um meio de levar a realidade ao conhecimento de seus próprios protagonistas.

Em tempo: o título deste texto, como o do ganhador do Oscar mês passado, não é o mais adequado, eu sei... só não quis perder a oportunidade de usá-lo.