27.7.08
O cavaleiro e as trevas
Nem o filho galã de Mel Gibson em “O patriota” nem um escudeiro de rosto bonito que vive, ele próprio, o sonho de combater nas justas em “Coração de cavaleiro”. Saído de aventuras de época sob medida para a Sessão da Tarde, o ator australiano Heath Ledger vai ser lembrado por dramas reais, personagens de complexa composição psicológica, uma indicação ao Oscar – por “O segredo de Brokeback Mountain” – e, quem sabe, a criação de um mito.
Fui conferir sexta-feira passada a última atuação de Ledger, que fez dele o nome mais comentado no universo cinematográfico pop este ano. Ele interpretou o Coringa em “O cavaleiro das trevas”, novo filme da série “Batman” – cujas filmagens terminaram dois meses antes de Ledger ser encontrado morto em seu apartamento em Manhattan, fevereiro último, aos 28 anos, por overdose de medicamentos.
A promessa de que veríamos um fabuloso desempenho no papel do Coringa – suplantando o de Jack Nicholson há dezenove anos, no primeiro “Batman” de Tim Burton – tornou inevitável a comparação com James Dean, que morreu em 1955, aos 24 anos, antes da estréia de “Assim caminha a humanidade”, que ele estrelou com Elizabeth Taylor e Rock Hudson, e após uma carreira de apenas três filmes em dois anos. Mas mereceria Heath Ledger um lugar no panteão de atores míticos como James Dean e Marilyn Monroe? Ou o mito seria ele próprio também um mito?
O mais famoso dos vilões da série “Batman” não tem um papel tão preponderante em “O cavaleiro das trevas”, uma vez que o Homem-Morcego vivido por Christian Bale também divide atenções a outro vilão, o Duas-Caras (interpretado por Aaron Eckhart), e a uma dúvida que o atormenta: se for para combater o crime, vale a pena ser um pária e ainda pôr em risco a vida de outras pessoas? Mas este novo “Batman” faz uma curiosa oposição ao anterior, também dirigido por Christopher Nolan, em 2005. Se “Batman begins” era um filme sobre a gênese do herói, “O cavaleiro das trevas” se concentra na motivação para o crime, para a quebra das regras.
Enquanto o Duas-Caras faz do crime uma vingança pessoal, o Coringa é a própria personificação da loucura e do caos, voltada contra as instituições. E o personagem criado por Heath Ledger, se não dispensa as piadas cínicas e de duplo sentido, é bem menos risonho que tantos Coringas que possamos ter visto antes. Mais sombrio, mais desiludido, mais imprevisível – e, por isso mesmo, mais assustador; a maquiagem deliberadamente borrada e os cabelos desgrenhados, menos que um palhaço do crime, fazem deste Coringa um monstro demente, que pontua o filme todo com a lógica de sua loucura.
Christopher Nolan tirou um pouco o “pé no chão” que manteve em “Batman begins”, criando uma trama bem mais explosiva, complexa e rápida, por vezes de difícil compreensão, e com momentos que passam o limite do acreditável – como o embarque de Batman em um avião em pleno vôo e a tecnologia que permite a Bruce Wayne transformar todos os celulares de Gotham City em aparelhos de sonar. Mas “O cavaleiro das trevas”, devemos lembrar, é uma aventura baseada em quadrinhos, e seu ponto forte de ligação com o mundo real está na psicologia dos personagens.
Assim como Nolan e Bale recriaram Batman, Heath Ledger recriou o Coringa – e recriou-se também como ator. Independentemente de roupa e maquiagem, reconhecemos o ator quando nos esquecemos dele encarnando o papel, e foi impossível encontrar no Coringa de Ledger o filho do patriota ou o cavaleiro da Sessão da Tarde. Não podemos saber a qualidade do trabalho que Ledger nos proporcionaria se estivesse vivo, mas o Coringa mostrou suas cartas, ele também, da mesma forma que Batman, sendo um pária cavalgando nas trevas da loucura. E esse questionamento, em meio ao fim de carreira em plena glória, é suficiente para Heath Ledger se tornar um mito.
foto: http://www.rottentomatoes.com/m/the_dark_knight/pictures/44.php#highlighted_picture
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3 comentários:
Ótimo texto sobre um filme que também me deixou extremamente impressionada. Heath Ledger roubou a cena e conseguiu uma coisa quase impossível: fazer com que o público esquecesse do Coringa de Jack Nicholson. Ele criou seu próprio mito. Abraços!
James Dean tornou-se um mito depois de três filmes em que interpretava personagens de cara lavada, cigarro na boca e raros sorrisos. Dizem os mais velhos do que nós que, nos anos 50, o chocante em Juventude Transviada era ver um homem vestido de jaqueta vermelha. O demais era mérito de James Dean.
Como comparar essa interpretação com a loucura reforçada por maquiagem pesada e borrada, cabelo verde e desgrenhado e gestos exagerados de um vilão dos quadrinhos, tal qual o de Heath Ledger? O Coringa é um personagem que já vem pronto para meter medo, porque já se sabe o que esperar dele a partir da experiência anterior com os quadrinhos.
Darth Vader é um dos vilões inesquecíveis do cinema hollywoodiano. Entretanto, mais pela criação feliz do figurinista — que captou a simbologia ocidental do Mal (aqui oposto do Bem) — do que pela interpretação do ator travestido naquela armadura de inspiração samurai. Que, a propósito, foi dublado por outro na edição. David Prowse criou Darth Vader? Não, ele estava pronto para qualquer um.
Estamos falando de dois atores que são mitos? Um deles é: Dean. O outro pode ser ou poderia ser: Ledger. Suspeito que, num futuro não tão distante, o Coringa será lembrado como um Vader ou como os filmes anteriores do Batman. Somente para os aficionados. A suspeita, no entanto, é um cenário para erros, e aqui estou me expondo a eles.
Acho que a questão está no que você escreveu: "Não podemos saber a qualidade do trabalho que Ledger nos proporcionaria se estivesse vivo". Concordo. Porém, sabemos a qualidade do trabalho que James Dean nos proporcionaria se estivesse vivo. Ou não?
Oi, Renato! Que bom que tu curtiu meu blog, também gostei muito do teu. Beijinhos
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