9.11.08

Obama e o mundo pós-Bush

Change – We can believe in. Esse o slogan que Barack Obama usou em sua campanha, e que estava em cada púlpito do qual ele discursava. Será o primeiro presidente negro dos Estados Unidos capaz de efetuar essa mudança, que o povo norte-americano (o próprio Obama dizia) e o mundo todo (nós bem sabemos) necessitam?

A idéia de um negro ocupando o Salão Oval da Casa Branca, até a campanha presidencial terminada dia 4 nos Estados Unidos, ainda muito vaga, pertencia ao imaginário da televisão e do cinema. Desde um Sammy Davis Jr. criança em 1933, escassa meia dúzia de atores interpretou o papel, sendo os mais conhecidos os presidentes vividos por Morgan Freeman em “Impacto profundo” e Dennys Haysbert na série “24 horas”.

E então o precedente, improvável para muitos, foi aberto, o que foi comemorado em todo o mundo. No Quênia, país onde nasceu o pai do presidente eleito, a nação parecia festejar o fim de uma guerra ou a queda de um ditador. Tanta alegria pode parecer exagerada: no primeiro discurso após a eleição – e em suas primeiras atividades no gabinete de transição – Obama prometeu medidas imediatas contra a crise econômica mundial, mas sem deixar de ser um presidente capitalista, da democracia, da liberdade e da oportunidade.

A pá de cal deitada sobre a campanha do republicano John McCain foi justamente essa crise econômica, contra a qual um George W. Bush atrapalhado, negligente com as populações pobres dos Estados Unidos e ainda sem conseguir justificar as perdas em vidas e dinheiro em duas guerras na Ásia pouco soube fazer. O presidente republicano foi, sem querer, o maior cabo eleitoral do candidato democrata.

Obama recebe um governo desacreditado em termos sociais, econômicos e ambientais, precisando se recuperar de um retrocesso de oito anos. Foi essa situação que fez o eleitorado norte-americano tornar real uma possibilidade tão remota – e a cor da pele do novo presidente, embora não tenha sido lembrada por ele próprio em seu primeiro discurso, justifica a esperança e a comemoração.


Afinal, a vitória de Obama é a vitória da tolerância sobre o preconceito e do diálogo sobre a imposição, mesmo que o sucesso do novo presidente contra as vicissitudes que sofre a população mundial seja relativo. Nascido no Havaí e tendo vivido na Indonésia, Barack Obama não cresceu imaginando-se o umbigo do planeta e já conviveu com a realidade do Terceiro Mundo.

É razoável esperar dele um posicionamento mais aberto, universal e preocupado com o futuro – com o meio ambiente, com a realidade das outras nações, com o uso da riqueza mais em preservar vidas do que em eliminá-las. Mesmo que muitos outros passos tenham que ser dados, o primeiro Obama parece disposto a dar, e é isso que esperamos também nós, cidadãos de outras nações, do presidente do país mais rico do planeta.

31.10.08

Quando entrar novembro

A poesia de Beto Guedes fixou em palavras uma idéia que já tínhamos – a de que a boa nova espera setembro para andar pelos campos. Pudera, setembro nos dá os oito primeiros dias da primavera. Meu ano imaginário da infância localiza nesse mês ainda casacos e blusões grossos de lã, mas, ao mesmo tempo, os primeiros dias de sol forte proporcionando uma cor diferente, mais intensa, no retorno aos passeios de domingo à tarde.

É estranho, pois, historicamente, setembro é o mês mais chuvoso do ano em Porto Alegre. Mês de chuvas e de ventos – de transição e ainda de espera, bem diferente daquela primavera subitamente acolhedora das histórias infantis. Talvez o setembro mineiro, aquele de Beto Guedes, seja mais ameno e brilhante que o gaúcho. E a culpa pelas lembranças distorcidas quem sabe seja dos tons vivos do filme Kodak que meu pai usava para bater os slides onde reside boa parte de minha memória.

E eu, que neste inverno recorri tantas vezes aos versos de “Sol de primavera”, acreditando em boas novas assim que o mês oito se fizesse nove, permaneci hibernando. Em nenhum mês tenho mais aniversários de amigos que em setembro – inclusive um bom punhado dos mais queridos que fiz na faculdade, quase um Clube da Esquina. Desejar felicidade e alegria por tantos aniversários também me deixou feliz, mas nada perto do que seria ver cumpridas algumas resoluções do mês.

Nada escrevi, tampouco fui ao cinema ou ao teatro, e uma hora de nado parecia não compensar os quinze minutos a pé até o clube. Poucos amigos encontrei, eles me fazem falta, e também neste inverno vi meu grupo de cinema, que comungava objetivos, sucumbir diante de vontades pessoais. Restou amarrar-se, perder tempo ou pensar só em trabalho, que pareciam estar na programação básica que trazemos do útero.

A acomodação era cômoda; a diversidade não dignificava o homem, cristalizado que estava ao fim de um inverno estranhamente morno e úmido, que lhe serviu para dar forças à influenza três vezes e que, nos dias mais frios, deixou-o confinado em plenas férias (férias?) em um apartamento a 11 graus centígrados. A porta da rua só se abria para atividades que utilizassem tão-somente o cerebelo. As demais nunca constavam da agenda, livro onde não cabem a poesia, o improviso e o inusitado, e que foi criado para listar desculpas para faltarmos a ocasiões interessantes.

Qual a boa nova? Onde o sol de primavera, neste setembro intelectualmente cinzento?

Então, bem mais apropriado que Beto Guedes me pareceu Green Day, cantando o esforço em deixar para trás frustrações e lembranças traumáticas em “Wake me up when september ends”. Mas veio outubro, indiscernível de setembro como é o pampa, dos dois lados da fronteira com o Uruguai. Apenas o vento corria mais forte, agora sim parecendo setembro. As horas, tão curtas para as desobrigações, para a vida pura e simples, para inspirar idéias e exalar palavras, apenas adiando projetos.

Até quando? Setembro findou, c’est printemps, novembro chega, e o homem hiberna. Hora de acordar.

27.10.08

Diálogo pós-eleição

– Maria do Rosário, José Fogaça... esta foi a verdadeira eleição Sagrada Família.
– Ué, Sagrada Família a troco?
– Não lembra a Sagrada Família da Bíblia? Jesus, Maria e José...
– Tá certo, tem a Maria e tem o José, mas e o Jesus, cadê?
– Jesus somos nós, que fazemos milagre todo dia e vamos continuar carregando a cruz!

4.10.08

Voto útil

Eu estava seriamente inclinado a votar em Luciana Genro para prefeita de Porto Alegre, mas depois pensei melhor: entre Rosário e Rosado, mil vezes a primeira.

27.7.08

O cavaleiro e as trevas


Nem o filho galã de Mel Gibson em “O patriota” nem um escudeiro de rosto bonito que vive, ele próprio, o sonho de combater nas justas em “Coração de cavaleiro”. Saído de aventuras de época sob medida para a Sessão da Tarde, o ator australiano Heath Ledger vai ser lembrado por dramas reais, personagens de complexa composição psicológica, uma indicação ao Oscar – por “O segredo de Brokeback Mountain” – e, quem sabe, a criação de um mito.

Fui conferir sexta-feira passada a última atuação de Ledger, que fez dele o nome mais comentado no universo cinematográfico pop este ano. Ele interpretou o Coringa em “O cavaleiro das trevas”, novo filme da série “Batman” – cujas filmagens terminaram dois meses antes de Ledger ser encontrado morto em seu apartamento em Manhattan, fevereiro último, aos 28 anos, por overdose de medicamentos.

A promessa de que veríamos um fabuloso desempenho no papel do Coringa – suplantando o de Jack Nicholson há dezenove anos, no primeiro “Batman” de Tim Burton – tornou inevitável a comparação com James Dean, que morreu em 1955, aos 24 anos, antes da estréia de “Assim caminha a humanidade”, que ele estrelou com Elizabeth Taylor e Rock Hudson, e após uma carreira de apenas três filmes em dois anos. Mas mereceria Heath Ledger um lugar no panteão de atores míticos como James Dean e Marilyn Monroe? Ou o mito seria ele próprio também um mito?

O mais famoso dos vilões da série “Batman” não tem um papel tão preponderante em “O cavaleiro das trevas”, uma vez que o Homem-Morcego vivido por Christian Bale também divide atenções a outro vilão, o Duas-Caras (interpretado por Aaron Eckhart), e a uma dúvida que o atormenta: se for para combater o crime, vale a pena ser um pária e ainda pôr em risco a vida de outras pessoas? Mas este novo “Batman” faz uma curiosa oposição ao anterior, também dirigido por Christopher Nolan, em 2005. Se “Batman begins” era um filme sobre a gênese do herói, “O cavaleiro das trevas” se concentra na motivação para o crime, para a quebra das regras.

Enquanto o Duas-Caras faz do crime uma vingança pessoal, o Coringa é a própria personificação da loucura e do caos, voltada contra as instituições. E o personagem criado por Heath Ledger, se não dispensa as piadas cínicas e de duplo sentido, é bem menos risonho que tantos Coringas que possamos ter visto antes. Mais sombrio, mais desiludido, mais imprevisível – e, por isso mesmo, mais assustador; a maquiagem deliberadamente borrada e os cabelos desgrenhados, menos que um palhaço do crime, fazem deste Coringa um monstro demente, que pontua o filme todo com a lógica de sua loucura.

Christopher Nolan tirou um pouco o “pé no chão” que manteve em “Batman begins”, criando uma trama bem mais explosiva, complexa e rápida, por vezes de difícil compreensão, e com momentos que passam o limite do acreditável – como o embarque de Batman em um avião em pleno vôo e a tecnologia que permite a Bruce Wayne transformar todos os celulares de Gotham City em aparelhos de sonar. Mas “O cavaleiro das trevas”, devemos lembrar, é uma aventura baseada em quadrinhos, e seu ponto forte de ligação com o mundo real está na psicologia dos personagens.

Assim como Nolan e Bale recriaram Batman, Heath Ledger recriou o Coringa – e recriou-se também como ator. Independentemente de roupa e maquiagem, reconhecemos o ator quando nos esquecemos dele encarnando o papel, e foi impossível encontrar no Coringa de Ledger o filho do patriota ou o cavaleiro da Sessão da Tarde. Não podemos saber a qualidade do trabalho que Ledger nos proporcionaria se estivesse vivo, mas o Coringa mostrou suas cartas, ele também, da mesma forma que Batman, sendo um pária cavalgando nas trevas da loucura. E esse questionamento, em meio ao fim de carreira em plena glória, é suficiente para Heath Ledger se tornar um mito.


foto: http://www.rottentomatoes.com/m/the_dark_knight/pictures/44.php#highlighted_picture

14.7.08

A cara a tapa

O Blogger me avisa por e-mail a chegada de um comentário novo, e... oops! Um amigo daqueles que não perdem jogo no Beira-Rio me corrige: o Inter nunca esteve nem estará na Segunda Divisão. É verdade, Tito. Quando escrevi o texto carregando essa gafe, na realidade eu me referia a uma repescagem da qual o Inter teve de participar em 1979 porque, naquele ano, apenas os dois primeiros colocados no Campeonato Gaúcho tiveram classificação direta para o Brasileiro. O Inter havia sido o terceiro colocado. Eu já havia tirado essa dúvida, mas tinha me esquecido de corrigir a informação no texto. Mesmo sendo de dezembro passado meu post (e, pelo visto, a volta à Primeira Divisão, para os corintianos, apenas questão de tempo), não vejo por que não fazer a correção. Estou aqui para dar a cara a tapa, mesmo.

29.6.08

O crime da cena

Chego do trabalho sexta-feira passada e a Globo está exibindo o último pedaço da Sessão da Tarde, um filme chamado “Viajantes do futuro”. Não que valesse a pena tentar entender, mas já à primeira vista a atração (sic) parecia uma verdadeira viagem na maionese, misturando adolescentes num game em cadeiras sacolejantes e cheias de aparatos, esquiadores munidos de metralhadora, e Pat Morita para dar a impressão de que havia atores de verdade no filme.

Eis que presencio a cena do crime: em meio a toda essa salada, um mixer, desses de cozinha, com pás bem mais longas que o normal e comandado por controle remoto, sai voando por uma sala até digitar, num teclado dentro de uma mala, um determinado código. Tudo isso ao som de “A cavalgada das Valquírias”, de Wagner. Se fosse um besteirol como a série “Apertem os cintos”, ainda vá lá. Mas “Apocalypse now” não merecia isso.

Quis saber quem foi o herói que se achou cineasta ao insultar daquela maneira as tomadas do genial Francis Ford Coppola. “Viajantes do futuro”, de 1995, foi o último de oito filmes dirigidos por James Glickenhaus, um magnata do mercado de empresas nos Estados Unidos que pelo visto, na falta do que fazer, resolveu gastar tempo e dinheiro mostrando como não se faz um filme (ele também foi roteirista e produtor executivo de alguns de seus filmes).


Glickenhaus aparece na internet mais por sua coleção de carros de luxo que por sua contribuição ao cinema. “Viajantes do futuro” não mereceu comentário nem no site Rotten Tomatoes, e a média de notas dos usuários do IMDb é 3,7. Naturalmente, não encontrei a cena do mixer, então resolvi ilustrar este texto com o original, bem mais digno do termo sétima arte.



22.5.08

No fim do Brasil

Locais distantes e isolados sempre me fascinaram. Na impossibilidade de conhecer algum desses lugares nas férias deste ano, voltei a Santa Vitória do Palmar, que ainda guarda uma sensação de cidade longe de tudo. Se, indo para o sul, o Rio Grande é o último estado do Brasil, Santa Vitória é a penúltima cidade, pois mais 20km e se chega ao Chuí, extremo sul do país.

Para se ter uma idéia desse isolamento, Santa Vitória fica confinada numa longa faixa de terra (aquela “pontinha” na parte de baixo do mapa gaúcho) entre a lagoa Mirim e o oceano Atlântico. Um gigantesco terreno alagadiço, dividido entre a Estação Ecológica do Taim, arrozais e campo a perder de vista. O tratado de Santo Ildefonso, entre Portugal e Espanha, em 1777, chamou essa região deserta de “Campos Neutrais”, pois, naquela “terra de ninguém”, nem portugueses nem espanhóis poderiam alojar tropas.

Ainda hoje, duzentos sonolentos quilômetros de estrada reta, sem nenhuma cidade à vista, são o único caminho para Santa Vitória, cidade de 30 mil habitantes onde poucas coisas acontecem e o prédio mais alto tem três pisos. Junto com Chuí, foi a última cidade do Brasil a ser ligada ao sistema nacional de energia elétrica: há até dez anos, a luz ainda era produzida por um gerador a óleo.

A cada vez que vou a Santa Vitória, gosto de ir à barra do arroio Chuí, na fronteira com o Uruguai, voltar-me para o norte e imaginar-me tendo à minha frente o Brasil inteiro. Mas não existe ali nenhuma placa indicando nosso ponto mais meridional e, neste ano, embestei de procurá-la. Convenhamos, os quatro pontos extremos de um país continental merecem um marco geográfico que os indique. Procurei informações turísticas em Santa Vitória e no Chuí, mas a funcionária que me atendeu nem sabia o que era um marco geográfico, imagine saber se existia um.

Foi uma tia de minha mulher que me deu certeza: havia um marco, e era possível vê-lo na estrada, entre o Chuí e a Barra do Chuí, que eu já havia percorrido várias vezes. De fato, um quilômetro depois da cidade do Chuí, meio escondido pela vegetação, lá estava o marco de pedra, numa curva do arroio, mas como chegar lá? Os brasileiros a quem perguntei não souberam me dizer. Ironicamente, um uruguaio é que me deu a informação correta; ele conhecia melhor que meus compatriotas aquelas ruas ainda em solo brasileiro.

Coerentemente com tamanho descaso com nossa geografia e nosso turismo, as placas indicativas que um dia existiram nas quatro faces do marco haviam desaparecido. Via-se apenas uma placa, mais recente, alusiva a uma cavalgada de norte a sul do país, feita em 2005. E na base do marco, talhados na pedra, os nomes “Brasil”, de um lado, e “Uruguay” do outro. Virei-me de novo para o norte, como de hábito: eis o Brasil! Fotos de um e do outro lado, e, apesar de nenhuma placa que me confirmasse, dei como cumprida a missão.

Mas o Google Earth iria me desmentir. O verdadeiro ponto mais meridional do Brasil não é nem aquele marco nem a Barra do Chuí, mas outra curva do arroio, cerca de 1km antes de desaguar no Atlântico. E bem ali, no meio da água, está o marco que eu procurava. Outra ironia: em tempos de Internet, teria encontrado o extremo sul do país sem sair de casa, não in loco, após 500km de viagem. Contudo, nada substitui a sensação de estar lá. E a descoberta do verdadeiro marco é, na verdade, um convite para voltar, mais uma vez, ao fim do Brasil.

8.3.08

O Mestrezão

Na terça-feira passada, foi-se um símbolo do ensino da língua portuguesa. O professor Edison de Oliveira, famoso por suas aulas bem-humoradas, faleceu aos 73 anos, de insuficiência cardíaca. Trabalhou na PUC, em cursinhos pré-universitários e tinha o seu próprio curso de Português. Seus livros eram verdadeiros vade-mécuns para as dificuldades mais comuns que temos com a gramática, cheios de ilustrações engraçadas que ajudavam a entender as regras. Lembro bem algumas, como aquela que diferenciava “comer à mesa” e “comer a mesa” – o indivíduo devorando a tábua não deixava esquecer que a crase era necessária, sob pena de indigestão.

Tive o privilégio de ser aluno do professor Edison – quatro meses de aulas no Universitário, em que o Mestrezão, como ele mesmo se intitulou, ajudava a perpetuar o folclore dos cursinhos. “Mestrezão” por causa de sua meia-dúzia de cabelos no peito, que ele fazia questão de mostrar em aula e que o tornavam “irresistível” para as mulheres. Entre trejeitos, caretas e piadas, tudo servia para que ele exercesse seu grande talento – ensinar nossa língua. A começar pelo próprio nome, que ele enfatizava, estava errado, porque registrado sem um acento agudo no “E” de Edison.

Ele optou por uma maneira anticonvencional de ensinar por achar que o bom humor e o lúdico facilitam a compreensão de uma linguagem cheia de regras e de exceções – e que, diga-se de passagem, é muito mal ensinada em nossas escolas. Irreverente no método, mas ferrenho defensor da língua portuguesa. Lembro muito bem o Edison em programas de TV, subindo numa escada, na rua, para repintar placas em que havia erros de português.

O Mestrezão vai fazer falta. No âmbito de Porto Alegre, ele tinha a popularidade que o professor Pasquale Cipro Neto tem no país, como destacou certa vez a revista
Veja. No entanto, o site do Universitário não dedicou uma só linha ao Edison, que recebeu o título de Professor Emérito do Rio Grande do Sul. Espero que o trabalho dele não caia no esquecimento, pois, se ainda é necessário um batalhão de Edisons para corrigir as crases erradas nas placas de nossas estradas, é porque precisamos de outro batalhão nas salas de aula, ensinando e ajudando os brasileiros a amar a língua portuguesa.

Leia aqui a matéria publicada em Zero Hora. Aqui, pérolas do Edison, relatadas pelo professor Geraldo Fulgêncio.

2.3.08

Onde os filmes fracos não têm vez

Dizem que, quando a fome é grande, a comida fica mais gostosa. Essa assertiva não vale para a sétima arte. Na tentativa de compensar o atraso do ano passado, voltei aos cinemas, mas com freqüência tenho sentido uma estranha insatisfação ao sair da sala. Mais estranha ainda porque a falta de tempo me obriga a escolher melhor os filmes, ou seja, nada de dramas ralos, comédias açucaradas ou ações hollywoodianas um-contra-todos. Às vezes me permito alguma fantasia, gênero que admiro, e mesmo assim, nos últimos tempos, o impacto tem sido pequeno. “Eragon” foi um desperdício de talento e dinheiro. “A bússola de ouro” caprichou no figurino e na direção de arte, mas não contagia. Nem a mágica de Harry Potter, que parece esgotada após cinco filmes, tem salvado a pátria. Será uma síndrome de “Senhor dos anéis”, my precious? Quando fui realmente gostar de uma fantasia – “O labirinto do fauno” –, ela era pano de fundo de um drama mais que real.

Apesar de meu gosto pelo cinema alternativo, arrisco às vezes um arrasa-quarteirão – e os heróis dos quadrinhos têm tido minha preferência. Mas, de novo, os resultados deixam a desejar. O roteiro débil do segundo “Quarteto Fantástico” não convenceu – e ainda perdeu a chance de aproveitar o potencial do Surfista Prateado, um personagem fascinante. O Homem-Aranha, por sua vez, está se tornando tedioso, entre novos vilões e o velho amor de Mary Jane, na pele da cada vez mais insossa Kirsten Dunst. Histórias mais profundas, com heróis (ou não) mais humanos e visual mais obscuro, contudo, têm se salvado, caso de “Sin City”, “300” e, claro, o Batman ressuscitado honrosamente por Christopher Nolan oito anos após a gelada protagonizada por Schwarzenegger e dez depois da bat-bunda de Val Kilmer.

Por que aquela sensação de admiração e êxtase ante a obra de arte (ou de pura e verdadeira diversão) tem sido cada vez menos freqüente quando vou ao cinema? Tem sido cada vez mais difícil dar uma nota 8 (ou superior) para um filme. Será que estou ficando velho e pessimista? Ou mais chato, pois não me deixo divertir, enquanto Roger Ebert, o guru dos críticos, parece gostar de quase tudo que vê? Nos últimos anos, poucos filmes me causaram uma grande e verdadeira admiração, fixando-se indelevelmente na memória. “Hotel Ruanda”, “V de vingança”, “Crash”, “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, “Match point”, “Cartas de Iwo Jima”, “A vida secreta das palavras”, “Closer”... e não muitos mais. And so it is, diria Damien Rice.

Na semana passada, contudo, mais duas vezes saí admirado do cinema. De novo, temáticas complexas. “Onde os fracos não têm vez” mereceu os Oscars que recebeu. O título em português é injusto para com o plot do filme, mas isso é mero detalhe. O que importa é o suspense minimalista criado pelos Coen, sem ajuda de música, noites tempestuosas ou ombros detidos por mãos que surgem do nada; em pleno dia, Josh Brolin, armado, descobre-se no meio do deserto, cercado de camionetes, cadáveres e dólares, e a cena é muito mais tensa que ver uma adolescente indefesa apavorada por um maníaco em uma casa escura. Isso sem contar o olhar fixo e implacável de Javier Bardem, qual uma morte ambulante que, em lugar de foice, carrega um maçarico. A violência que o personagem de Bardem representa e que move o filme, como a violência que sofremos hoje em dia, não se sabe mais de onde vem nem para onde vai. Esse desencanto, nos olhos cansados do policial interpretado por Tommy Lee Jones e que está no encalço do assassino, torna universal um filme que à primeira vista poderia parecer um convencional faroeste moderno.

Se eu havia gostado do novo trabalho dos irmãos Coen, mais ainda me agradaria “Sangue negro”, um filme mais de ator do que “Onde os fracos não têm vez”, mas nem por isso menos admirável. Contando a história de como um minerador, após cavar sozinho seu primeiro poço, tornou-se um magnata do petróleo na Califórnia, o diretor Paul Thomas Anderson lança um olhar crítico sobre como os Estados Unidos se tornaram o que são. A ambição, a determinação e a falta de escrúpulos são lei na vida do personagem do britânico Daniel Day-Lewis, numa interpretação devastadora que faz valer cada um dos poucos filmes em que ele tem atuado. Day-Lewis também encarnou, à sua maneira, a violência – desta vez, contra aqueles que se interpuserem entre a sociedade norte-americana e seus objetivos de riqueza e domínio, mesmo que sejam instituições como a igreja e a família.

Sim, acho que estou ficando chato em relação a filmes. Chato e hiper-realista. O hábito de vê-los me fez mais exigente em termos de fotografia, direção, interpretação, facilitando a identificação de um filme mediano. E as histórias que os filmes contam? Ainda posso me encantar por uma aventura, uma fantasia, uma comédia, mas um toque de realidade, nua e crua, se mostra necessário. Afinal, sinto-me um humanista, e as mazelas na sociedade, nas relações interpessoais ou no psicológico, uma vez expostas, elas
mesmas ou por meio de metáforas, criam possibilidade de que um dia sejam tratadas. Nada existe até que seja conhecido, e o cinema, embora poucas sejam as histórias verdadeiramente originais hoje em dia, é um meio de levar a realidade ao conhecimento de seus próprios protagonistas.

Em tempo: o título deste texto, como o do ganhador do Oscar mês passado, não é o mais adequado, eu sei... só não quis perder a oportunidade de usá-lo.

31.1.08

O mar

Chamai-me Ismael. Sim, pois, de tempos em tempos, quando preciso renovar as energias e a inspiração, tomadas por meses de burburinho e luta contra o relógio, sinto-me o próprio protagonista de “Moby Dick”, compelido a procurar a parte líquida de nosso planeta.

Credo, devo parecer presunçoso iniciando o texto assim, eu, que ainda não vi a terra desaparecer do meu campo de visão. Talvez por isso mesmo o mar exerça em mim tanta atração, assim como o tempo, a imagem e a palavra. Não há ano em que eu não busque um caminho que me permita vê-lo, ouvi-lo, senti-lo – e assim mesmo o mar ainda é apenas parte do meu imaginário.

O mar que concebo difere muito daquele que nos é dado pela vida moderna em um país tropical. Cerveja, esporte, sol a pino, sex appeal? É claro que o oceano mexe com minha essência, faz pensar em liberdade, em natureza, em amor – este próprio um anagrama para o título do texto. Porém, tanto a imagem que nos vendem de “Rio-quarenta-graus” quanto a realidade que encontramos – engarrafamentos, acidentes, poluição e praias lotadas e hiperurbanizadas – são um insulto ao local onde surgiu a vida.

Este Ismael ainda imagina um mar bucólico, crepuscular, para todas as estações, em frente ao qual os poetas possam encontrar inspiração, e os amantes, deixar navegar o pensamento com as velas da plenitude. Tão belo quanto perigoso, o mar azul e de águas tépidas dos pescadores de Caymmi é o mesmo das falésias britânicas e da bruma fria cantada por Macca em “Mull of Kintyre”.

Em vez de milhões esperando o ano novo em Copacabana em meio a um caos ocultado, vejo simples grupos de amigos, abraços e cabelos ao vento no aguardo do primeiro amanhecer. Em vez do triste paredão que rouba o pôr-do-sol em Balneário Camboriú, pequenas e acolhedoras casas, com seus avarandados dando passagem à agradável brisa com que o mar nos presenteia.


É assim que eu o imagino. Deixemos longe o barulho de carros, lanchas e jet skis e, enquanto não for possível a viagem já prometida, para, como Ismael, realmente conhecer o mar, sejamos apenas os namorados, pés tocando a areia, a ouvir, a cada quebrar das ondas, o oceano dizer o seu próprio nome: mar... mar... mar...

29.1.08

Entre o rosa e o branco

(Ou: Chega de férias!)

Chega de textos bregas. Chega, na falta de outras, de palavras excessivamente doces, como aquelas guloseimas feito plástico cor-de-rosa que os shoppings vendem a granel. As palavras não são itens de confeitaria, mas frutos, cujo sabor deveria variar conforme o paladar que os colhe. Quero que elas digam a beleza que tiverem, nada mais.

Já falei sobre o vento, o outono, a chuva... Às vezes eu me sinto um mero adicionador de glicose às intempéries, tão monocórdio como o entediado Bill Murray de “O feitiço do tempo”. Dias iguais, palavras iguais. Que ironia! Tal e qual Ferdibrand, o enviado especial a Punxsutawney, Pennsylvania, era um jornalista oferecendo seu reino por uma palavra que fizesse a diferença.

E chega de justificativas. Estou sempre “voltando” para meus cinco ou seis leitores, se os tiver. Ausência de inspiração é uma coisa, falta de disciplina é outra. No ano que acabou, deixei pela metade uma dezena de textos, como aquele sobre o desabamento da obra do metrô em São Paulo. Inútil requentá-lo, o tema já fez até aniversário. Falando em aniversários, em julho de 2007 aconteceu o centenário de Frida Kahlo e nem aproveitei o fato de que uma amiga esteve no México na época das comemorações. Meu blog poderia ter uma correspondente internacional, mas que justificativa há para a falta de determinação na hora certa?

Sim, chega de férias para o blogueiro. Não que eu vá escrever todos os dias, mas tenho feito chover pouco neste campo, bem menos do que eu queria. Um por cento de inspiração e noventa e nove de transpiração? Nem tanto, mas, enquanto eu oscilar apenas entre o rosa de palavras adocicadas e o branco de folhas não escritas, a grama do blog vizinho sempre parecerá mais verde.

14.1.08

Ano novo

Mais um mês de jejum, devido (também) às férias, que me ensejaram alguns parágrafos novos e o que faltava para complementar outros mais antigos. Se seguirmos a receita, que ouvi de alguém, de que uma forma de atrair sorte no novo ano é fazer algo pela primeira vez na vida no dia 31 de dezembro, não perdi a chance em 2007, pois passei minha primeira virada de ano na beira de uma praia. Foi isso, além de um bate-papo com a Katia Kreutz, que inspirou este texto.

* * * * * *

Assim que Papai Noel sai de cena, todo 25 de dezembro, e enquanto nosso país globelezado não se torna a própria Marquês de Sapucaí, aquecemos tamborins e quadris com a alegria exagerada da virada do ano. Nada contra a festa, a confraternização, os fogos de artifício, mas o ano que acaba e o que chega são tratados de forma desproporcional.

A catarse da transição enseja muitas vezes que o “adeus, ano velho” manifeste junto um destrutivo “já vai tarde”. No final de 2005, por exemplo, a loja de moda jovem Gang forrou as ruas em cidades gaúchas e catarinenses com outdoors dizendo, em letras garrafais, “Fuck you 2005”. Além de anti-educativa e grosseira, tanto que chegou a ser retirada pela Justiça em Santa Catarina, a campanha queria demonstrar um sentimento que, acredito, não é verdadeiro.

Algumas vezes, preferiríamos legitimamente que certo ano ou certa época da vida não tivesse existido. Acidentes, mortes em família, fracassos, desamores – todos deixam marcas profundas. O tempo, contudo, costuma cicatrizar as feridas, e a época de infortúnio pode, sim, ser relembrada não somente pelo trauma, mas pelo aprendizado: como enfrentamos aquele período, por que ele aconteceu, o que é possível fazer para que se repita.

Por isso, que me perdoem aqueles para os quais o ano velho não valeu um só de seus 365 dias; se nem tudo serão alegrias em 2008, tampouco 2007 foi uma tristeza só. Apesar de meus ceticismos, no fundo sou otimista. A felicidade, se representada num gráfico, não é uma linha contínua no tempo, afinal não somos princesas de conto de fadas; antes, ela é uma sucessão de pontos criados pela intersecção entre a linha da vida e os fatos felizes que vivemos – ou a forma como os interpretamos. Quanto mais intersecções, mais contínua essa linha, e mais teremos desse misterioso e aparentemente inatingível sentimento chamado felicidade.

Portanto, feliz 2008!