31.12.09

O botão da alegria

A charge de Amorim publicada hoje no jornal Correio do Povo resume um pensamento que, se costuma me ocorrer em épocas como esta, em 2009 foi mais forte. Precisamos ficar mais felizes em determinados momentos? Já falei sobre o ano novo aqui, mas um enfoque ainda ficou a merecer seus parágrafos.

Conheço gente que possui, parece, um botão liga-desliga de alegria. Sextas-feiras, Natal, Ano Novo, Carnavais (sejam na época em que forem). Muitos vão para não dizer que não estiveram presentes, outros tentam apenas extravasar, exorcizar fantasmas; mas percebe-se em tantos foliões do Sambódromo carioca ou da Sete de Setembro em Salvador, para ficarmos nesses exemplos, uma alegria legítima, cultivada ao longo do ano a despeito de todas as dificuldades e florescida naquele preciso momento, fenômeno esse para mim tão admirável quão inexplicável.

Entretanto, eu não tenho esse botão liga-desliga, o que debito talvez à hereditariedade alemã ou à cultura subtropical de Porto Alegre. Não me alegram a música de Ivete Sangalo ou a voz etílica de Zeca Pagodinho. Prefiro a idéia do Ano Novo plácido, tranquilo, com um violão à beira-mar e meia dúzia de bons amigos esperando os primeiros raios do sol. Antes uma virada que permita pensar que uma preocupada em esquecer.

Meu dezembro não foi fácil, é bem verdade. Doenças em família se somaram a uma insana, ilusória e inócua corrida, no ambiente profissional, para “colocar o trabalho em dia”. Assim como a televisão tenta nos convencer de que temos um botão da alegria, as corporações acham que temos também um botão para trabalhar além dos limites. Nem máquinas fazem isso: imagine-se o que aconteceria a uma lavadora de seis quilos carregada com dez quilos de roupas. Nessas horas, vê-se com mais nitidez a quem é dada verdadeira valorização pelo trabalho feito, e uma sensação de cansaço, inutilidade e desapontamento diminuiu muito a alegria desta época.

Não pensem, contudo, que choro de barriga cheia. Não desconsidero tantos que passaram por coisa bem pior em 2009. Apenas conto a história que reforçou minha desobrigação de me sentir estupidamente feliz nesta virada de ano – e que teve, de certa forma, um endosso do chargista do Correio do Povo. A vida segue, nem tanto ao céu dos fogos de Copacabana, nem tanto ao mar(asmo) do personagem de Amorim. E, com ela, seguem as tentativas, para quem realmente quiser abraçá-las, de criar motivos de amor, paz, sorrisos e realizações em 2010. Talvez seja esse o verdadeiro botão da alegria de cada um.

15.10.09

Recinemizar


Pelo domo de vidro, vê-se o sonho de Vincent Freeman. Num futuro não muito distante, um voo quase corriqueiro rumo a Titã, lua de Saturno. Não para os olhos que o veem, impedidos de nascença, pelo próprio DNA, de ser algo muito mais do que os olhos de um faxineiro. Pois esses, os olhos de Vincent Freeman, veem mais longe e farão o que for necessário para driblar o próprio código genético e encontrar as estrelas.

O domo de vidro, arquitetura de Frank Lloyd Wright, foi emprestado à empresa Gattaca, corporação científica que batizou o filme de estreia do neozelandês Andrew Niccol, em 1997, no qual Ethan Hawke encarnou Vincent Freeman. Milhões de fotogramas dos filmes que já vi, e minha mente se ocupou em lembrar este insistentemente nos últimos dias. Pelo filme, pelas atuações? Pela história, eu sempre fã de distopias? Ou pela ambientação, que valeu uma indicação ao Oscar de Direção de Arte?

Não, o que me levou ao fotograma foi o mesmo foguete que conduzia os astronautas a Titã. E uma palavra: recinemizar. Voltar a viver o lado cinema da vida, e não estou falando apenas da sétima arte, de voltar a ir ao cinema após seis meses sem ver o apagar de luzes. Estou falando de acordar e acreditar no que se sonhou. Não importa por que Vincent quer partir, importa apenas que ele quer partir.

Assim como a faxina que Vincent fazia em Gattaca, meus carimbos nos processos são meu ganha-pão, mas não carimbam passaporte para lugar algum. Eles não dizem nada, não têm emoções como palavras ou imagens, não fazem nada por mim. Ou bem menos que algumas horas frente ao monitor na cada vez mais árdua tarefa cerebral de cavar e remexer ideias, sentimentos e informações e empilhá-los de forma razoável em um texto. Sim, os neurônios também têm músculos, e eles cansam, perdem a força.

Mas, para poder exercitá-los novamente, é preciso que o que faz sentido deixe de fazer sentido. É preciso fazer um barco atravessar uma colina em plena floresta amazônica; é preciso testemunhar um crime pela janela de casa e não poder fazer nada devido a uma perna quebrada; é preciso tomar banho na Fontana di Trevi com Anita Ekberg; é preciso cantar alegremente para Brian que veja a vida por seu lado brilhante, mesmo que se esteja pregado a uma cruz. Bem-vindo ao Clube da Luta!

Por isso, quando ontem, no primeiro encontro de uma oficina de roteiro, soube que assistiria a “Gattaca”, percebi-me novamente a caminho de Titã. O domo não é a separação entre mim e o sonho, e sim um post-it que um arquiteto lendário desenhou em vidro unicamente para não me deixar esquecer o sonho. Os planetas estão de novo em conjunção, é hora de recinemizar.

Em tempo: Vincent Freeman, do sânscrito e do inglês, significa homem livre vencedor.

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Foto:
http://www.vfxhq.com/1997/gattaca.html

3.10.09

Aquele abraço!

Não posso falar sobre o Rio de Janeiro. Só estive lá por uma semana, em 1985, e, desde então, o que soube foi por parentes e pela televisão. Na cidade que eu não via, Zé Pequeno já estava morto, e me assustava, naquela época, a simples ideia de não se poder abrir o vidro do carro. Se é assim hoje em Porto Alegre, minha visão do Rio atual deve ser inexata. Portanto, não posso falar sobre a sede dos Jogos Olímpicos de 2016.

Não posso ter certeza se o Rio é a cidade maravilhosa onde os personagens endinheirados de Manoel Carlos vivem a vida ou se várias cidades descendo os morros sobre a cidade, disputando (e tomando à bala) o poder escolhido pelo voto. Não sei se o Cristo Redentor abre mesmo os braços para a Guanabara e o mundo, se Ele é o da Sapucaí, maltrapilho e censurado, ou se tem os braços erguidos diante do assaltante, como na charge que vi um dia.

Mas eu sabia que o Comitê Olímpico Internacional escolheria o Rio de Janeiro para os Jogos de daqui a sete anos. O prestígio político do presidente Lula, a estabilidade econômica do Brasil a despeito da (aham) marolinha que começou nos Estados Unidos ano passado, o termômetro que foi o Pan-Americano de 2007, a escolha de nosso país para a Copa do Mundo de 2014 e um continente inteiro que ainda não havia sediado uma Olimpíada foram conjunção mais que suficiente. O Brasil é a bola da vez; que alguém diga se essa pedra já não estava cantada antes da abertura do envelope, ontem, com o nome da capital fluminense.

Eu sabia também que um dia sediaríamos o maior evento do esporte mundial. E me sinto orgulhoso, apesar de o Rio de Janeiro não continuar mais tão lindo como as imagens mostradas pela delegação brasileira ao COI em Copenhague – e apesar de eu não me iludir com promessas de transparência. Hoje em dia, lisura, sozinha, não promove um evento do tamanho de uma Olimpíada, ainda mais no Brasil, a terra do jeitinho. O noticiário fala em investimentos de R$ 25 bilhões para os Jogos Olímpicos, mas sabemos que o iceberg será maior. Não só pela propina (que haverá), mas por causa de cinco séculos de desgovernos, remendos e improvisações.


Trânsito, saúde, segurança, poluição e saneamento básico são desafios que transformaram nossas cidades em ambientes caóticos e necessitam investimentos pesados – não só no Rio e nas sedes da Copa do Mundo. Entretanto, os olhos do mundo estarão voltados para o Brasil em 2014 e 2016, e temos afinal uma oportunidade para que os governos tenham vontade de minimizar esses problemas. Outra razão, portanto, para comemorar. Afora o esporte, pelo natural incentivo que receberá. Patrocinadores, investidores, empreiteiras, redes de televisão, todos quase tão capitalistas quanto o governo Lula, pelo verdadeiro Rio de Dinheiro. E nosso presidente? Ah, para ele já está sendo um abraço. Aquele abraço.

8.8.09

Bobagens, bobagens

Frédi, um amigo meu, me contava outro dia sobre uma conversa que teve com um colega de trabalho, chamado Mauro Arcélio. Perguntava o colega se, pelas leis da Física, não seria possível captar no ar a palavra dita há tempos por alguém. E Frédi, notório especialista em assuntos gerais, achou que não, que as ondas sonoras que produzimos, de tão fracas, se dissipam muito rápido, além de se misturarem com os outros sons. A hipótese então levantada pelo Mauro Arcélio: se tudo o que dizemos se dissipa, se nada fica, então por que nos preocuparmos em só dizer coisas sérias? Por que deixar de rir e de dizer bobagem se nada vai ser escutado dali a poucos segundos?

Lembrou-me aquela máxima, não leve a vida a sério, pois não se leva nada dela. Este Mauro! Pensei, faz sentido o que ele disse. Pelo menos para nós, mortais incapazes de mudar o mundo, o sério é pegar leve, com bom humor, e expressá-lo livremente. Manter a cara séria e amarrada, isso sim é bobagem. Nascemos longe de Kripton ou de uma Mansão Wayne. Que diferença vai fazer para a ordem do universo?

Não é o caso de cidadãos de outras esferas, inalcançáveis, e que sabem que deveriam levar a sério o que fazem. E se aproveitam de que a voz se dissipa na atmosfera, assim como nossa memória para certas bobagens.

A governadora acusada de improbidade administrativa pode deixar que crianças estudem em salas de aula de lata, mas os professores não podem protestar em frente à residência dela. Eles são “torturadores de crianças”, pois os netos da governadora não puderam sair de casa. Crusius credus! Na televisão, um ex-presidente, apoiando outro ex-presidente, manda o senador que disse a verdade digerir a própria língua, duela a quien duela. Dias depois, digladiam-se no mesmo local um cangaceiro de terceira categoria e um coronel de merda. Todos vossas excelências, trabalhando para o povo. É fácil alcançar R$ 2,7 bilhões para 81 senadores gastarem num ano, difícil é encontrarmos uma finalidade para o Conselho de Ética.

Qual o problema, então, de falar bobagem? A pior já fizemos, foi eleger certas pessoas. Vou dizer ao Frédi, se o Mauro Arcélio quiser um dia expressar todas as suas ideias, põe muito blogueiro bom no chinelo.

27.6.09

Heróis

Ontem à tarde, minha filha Luísa, 3 anos, empilhava, uma a uma, minhas revistas Set. Alcanço a ela uma revista, ela pega, olha a capa e põe o exemplar na pilha. Passo a ela um número em que uma foto enorme de Angelina Jolie domina a capa. Luísa aponta para o rosto da atriz e pergunta:

– Mamãe?

Começo a tentar responder, enquanto ela pega a seguinte, trazendo Christopher Reeve na roupa de Superman, e pergunta:

– Papai?

Sem querer, e sem saber quem são Angelina Jolie ou Superman, Luísa me lembrou que para nós, filhos, nossos pais costumam (ou deveriam) ser as pessoas mais poderosas, bonitas e fortes do mundo. Os seus primeiros heróis. E ninguém precisou dizer isso a ela, pois ela nasceu sabendo.

18.1.09

Passagens (março): o segundo passo

O que fiz em termos de cinema após a apresentação de meu primeiro curta-metragem não condisse com o entusiasmo daquele momento. Ao longo de dois meses, fui convidado para co-dirigir outro curta, no qual precisaria comandar ensaios com um elenco bem maior, e considerei fazer direção de produção de um terceiro filme, junto a uma equipe profissional. Que desafios! Essas produções, no entanto, não foram adiante, e o entusiasmo kaputt!, fez água. Meu café, mais que cortado, parecia pequeno.

Agarrei-me então a uma tábua que eu não esperava. Entrei para um grupo de estudos sobre direção de arte, coordenado por Gilka Vargas e Iara Noemi. Minha ignorância sobre o assunto não era de admirar; mesmo no meio cinematográfico, muita gente ainda não reconhece que o diretor de arte não é meramente o responsável pelo cenário. Não, ele comanda uma grande equipe de técnicos (cenógrafos, figurinistas, maquiadores, entre outros), dando coerência artística e estética a todo esse trabalho. É (ou deveria ser) um dos manda-chuvas do set de filmagem, junto com o diretor de fotografia e o diretor propriamente dito.

Nem penso em trabalhar com direção de arte, mas o conhecimento nessa área mudou minha concepção sobre cinema. Assim como o montador, ao decidir os tempos das tomadas, o diretor de arte, no momento em que define ambientes, relações entre espaços e cada objeto que estará em cena, tornou-se para mim também um dos “donos” do filme. E passei a ir ao cinema cuidando coisas diferentes, como distribuição de espaços, texturas predominantes e objetos com significado especial para a história.

Quanto mais sei sobre cinema, maior o abismo entre os enlatados norte-americanos e os filmes ditos “de arte”. Alguns diretores podem ser generosos com o público, como Woody Allen ao explicar a metáfora (genial, diga-se de passagem) da bola de tênis em “Match point”. Mas não obrigatoriamente, e então podemos ver o filme sem entender o que representa, por exemplo, a casa em “Delicatessen” (dos franceses Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet) ou o relógio do capitão em “O labirinto do fauno” (do mexicano Guillermo del Toro).


Mas este meu segundo passo no mundo do cinema também teve efeitos práticos. Confirmou a volatilidade de grupos e projetos no universo cinematográfico. Se pouquíssimos sobraram do grupo de estudos inicial, em março, que parecia reunir sozinho todas as funções básicas de um curta, também havia no final do ano outras pessoas, com sangue novo e boas idéias. Recuperei a vontade de escrever e filmar (alô, Paula! Vamos fazer um filme?). E percebi que, embora esteja me naturalizando nesse país chamado cinema, ainda me sinto um estrangeiro – aviso para que eu dê novos passos e siga caminhando por ele.

2.1.09

Passagens

Os segundos não mais se continham na coluna do tempo e o ano velho se fez novo. Da mesma forma, as palavras transbordavam após outro longo silêncio, pedindo que o papel as retivesse, antes que eu as perdesse por esquecimento.

De todas as passagens do ano que findou, algumas ainda marcam a memória, que, aceitando gentilmente o convite que lhe fiz, trouxe a matéria para os próximos textos. Peço desculpas pela antigüidade dos temas – é que considerei ainda relevantes na minha história, pontuando os meses de 2008.


E rogo ao leitor, não me peça por enquanto as regras desse “acordo ortográfico” (sic), tão necessário à nossa cultura quanto um coquetel de aniversário da ABL. Isso nem me passou pela idéia.