24.12.06

Os dois Natais

Nem bem terminou outubro, e o cessar-fogo televisivo pós-Dia da Criança já era um aviso: Santa Claus is coming to town. Os jovens lindos e sarados, bebendo cerveja na praia, começam a conviver nos intervalos comerciais com a neve, os pinheiros e um batalhão de Papais Noéis encasacados a despeito dos 40 graus – um sincretismo cultural que ninguém, neste país do jeitinho, e miscigenado por natureza, ousa desafiar.

Essa cultura que importamos do norte da linha do Equador e abraçamos sem pestanejar tinha em minha infância uma aura mágica, como se a noite de Natal fosse mesmo diferente das outras, independentemente dos presentes. A sala escura para o pisca-pisca das luzes, o intenso cheiro das folhas da árvore (que ainda era um pinheiro de verdade naquela época) e “A harpa e a cristandade” de Luís Bordon, eu os fotografei mentalmente, temperados por uma estranha sensação de mistério e felicidade contemplativa.

Aos poucos, essa fotografia deixou de ter importância no meu álbum, e aquela estranha sensação transferiu-se para outros dias, como o Ano Novo. Sem traumas, como a descoberta de que Papai Noel não existia. E sem uma razão específica... o “adeus” que recebi três dias antes do Natal? Não. A descoberta de que ia à missa apenas por razões sociais? Tampouco. A consciência de que o bom velhinho deixou de ser um santo para trabalhar como garoto-propaganda? Esta contribuiu, mas foi mais conseqüência do que causa.

Talvez tenha sido apenas a evolução natural de um caráter. O aniversário de Jesus foi deixado meio de lado, ficando apenas o hábito de reunir a família, cear e trocar presentes. Tradição? Imposição social? Inércia? Um pouco de cada, é provável. Ironicamente, a festa que deveria ser a mais espiritual passou a ser o supra-sumo do comercial.

Minha visão, não tanto materialista, mas questionadora, então se impôs: existe algo que transcende, mas não tenho certeza de que é isso. E, como se estivesse em um deserto, o da falta de convicção religiosa, já fui tentado a não participar mais dessas comemorações em que o aniversariante é raramente lembrado. Parecia hipocrisia.

Entretanto, em nome de outro Natal, que também surgiu justamente de uma postura mais racional, continuei a presentear os mais próximos e desejar feliz Natal – embora o Ano Novo tenha muito mais efusão. Se valores de outras culturas, como a fidelidade do Islamismo e o apego à tradição no Judaísmo, tanto merecem minha admiração, por que não o hábito de celebrar o nascimento do Deus encarnado homem?

Cada um, em outras palavras, tem seu próprio Natal, e é em respeito à convicção dos outros que desejo felicidades. Se o Cristianismo falhou ao deixar que se perdesse o caráter espiritual de suas mais importantes festas, resta a instância pessoal. O presente não é mera obrigação, é a alegria de presentear e ver um sorriso. Afinal, esses são valores que um dia fotografei e ainda têm posição de destaque em meu álbum.


Então, se o pinheiro é alemão, adornado com lâmpadas como reza a tradição norte-americana, e se Papai Noel é um santo nascido na Ásia Menor e desenhado e vestido pela Coca-Cola, é menos importante. O que importa é a convicção de cada um, que as ações com ela se coadunem e que o Natal, represente ele o que representar, seja um dia feliz. Isso é o que devemos desejar.

12.12.06

Time is over

time.
time to.
time to start.
time to start over.
to start over.
start over.
over.

12.10.06

Há tempos

Meu herói não morreu de overdose. Levado pela Aids, suas cinzas foram espalhadas em um campo de flores...

Isso foi há dez anos, completados ontem.

Exagero chamá-lo de herói; Renato Russo não queria ser exemplo, modelo ou líder para ninguém. Ele apenas queria fazer música. Discreto na vida pessoal, ele expunha nas canções seus problemas, suas preocupações. O tempo, o amor, a juventude, a política, a hipocrisia. E a música que Russo fez, à frente da Legião Urbana, causou controvérsia. O jornalista Adroaldo Streck, por exemplo, via em “Minha papoula da Índia/ Minha flor da Tailândia/ És o que tenho de suave” uma apologia das drogas.

Até para alguns de seus próprios fãs, o verdadeiro talento de Renato Russo ficou nos três ou quatro primeiros discos da Legião. De fato, o estado depressivo do compositor passou a predominar sobre a capacidade criativa, e, após o álbum “V”, ele começou a se tornar repetitivo.

Mas é fato que Russo foi um referencial na cultura pop nacional em uma década que, em outros setores, foi considerada perdida. Tanto que, mesmo após sua morte, ele continuou sendo descoberto pelos adolescentes, a geração para a qual ele geralmente falava – e a discografia da Legião Urbana continuou no catálogo.

Exagero chamá-lo de herói. Contudo, todos nós buscamos, especialmente na época da afirmação do caráter, alguém que ajude a expressar nossos sentimentos, alguém que nos ajude a encontrar nossa própria identidade. Para mim, em tempos de colégio e de faculdade, a Legião era a música das festas, a descoberta de amigos pela comunhão de idéias, um show inesquecível que a banda fez para 17 mil pessoas no Gigantinho...

Por trás da denúncia das canções bate-estaca da primeira fase da Legião, estava um artista para quem “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Apesar de ver a esperança dispersa, ainda acreditava que “o que vem é perfeição”. Prevendo a vida curta que teria, a pressa de viver e de dizer é que fez com que o tempo de Renato Russo não tivesse sido um tempo perdido.


Foto: http://www.virgula.com.br/musica/fotos/f6625.jpg

9.10.06

Palavra contida

Talvez nem saiba a sorte desmedida
Que eu vi trazeres pela tua mão
Talvez nem sinta o doce olor da vida
Que eu vi soprares rumo ao coração.

O teu olhar parece que não vejo
Gritando o que nem pede um sussurrar.
Palavra, o teu som é um ensejo
Que o sonho teima, não quer enxergar.

A tez do sentimento se arrepia
Ao toque aconchegante desta voz.
Por que, então, um'alma silencia
E impede que eu e eu se tornem nós?

Perguntas tantas o teu peito trouxe
Que a tímida resposta se contém
Por trás deste silêncio a alma é doce
Amargo é parecer o amor desdém.

3.10.06

Reflexões sobre uma eleição

I

Ao final de tudo, não votei no candidato “Anula Lá”, do qual fiz propaganda algumas vezes. Não que eu tivesse encontrado candidatos a quem eu confiaria a guarda de minha casa, como disse o presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, na televisão. O fato é que, apesar da argumentação ultrapassada, lembrando um romântico Lula pré-1989, mas sem metade da habilidade, Heloísa Helena me parece mais autêntica. E, para o governo do Estado, não havia chance de comparação entre Olívio Dutra e um hipotético segundo turno entre Yeda Crusius e Germano Rigotto.

Também é fato que estamos nas mãos da legislação, que ignora na contagem final os votos brancos e nulos – ou seja, não permite a abstenção como forma de protesto. Somos obrigados a votar, não no candidato melhor, mas no menos pior. Afinal, discordo de Cristovam Buarque quando disse que o brasileiro não é corrupto por natureza. É sim, senador, essa é a cultura em que vivemos: todos, podendo, querem tirar sua casquinha. E, ironicamente, esse é um dos motivos pelos quais não anulei meu voto. Mas que deu uma vontade grande, isso deu.

II

Ouvi um pedaço da primeira entrevista que Olívio Dutra concedeu como candidato a governador no segundo turno. Votei nele por simpatia, pelo histórico de honestidade e por falta de melhores nomes, mas o discurso de Olívio está cada vez mais cansativo e vazio. Entendo perfeitamente e concordo com ele quando diz que o Estado é um espaço de construção da cidadania ou cita o protagonismo do povo como orientador de sua política. Mas que significado têm essas palavras para o cidadão comum, o operário, o trabalhador informal?

Esse discurso, que já vem dos tempos da eleição à Prefeitura de Porto Alegre (1988), é tão vago quanto o de tantos desconhecidos candidatos a deputado federal que traziam como principal proposta a mudança no Congresso. Olívio tem tido sorte, ainda mais numa campanha sem ímpeto como a deste ano, ao transformar palavras imprecisas, como dialogar com as pessoas de bem e resgatar a democracia, em votos. Mas haja sorte! Unir as forças do campo democrático, espraiar o número de votos e vencer Yeda no segundo turno não será nada fácil.

III

José Roberto Arruda, deputado “pianista” envolvido no caso da violação do painel eletrônico da Câmara e que havia renunciado ao mandato, elegeu-se governador do Distrito Federal no primeiro turno. Fernando Collor de Mello, quem diria, foi eleito senador das Alagoas pelo PRTB. Outros nomes? Antonio Palocci, Paulo Maluf... E eu que pensava que tinha a memória fraca.

IV

Cada eleição é decidida por determinadas atitudes do eleitorado, que podem confirmar ou desmentir tendências. Um fenômeno o desencanto com Lula que captei aqui e ali: alguns eleitores realmente achavam que ele seria um “salvador da pátria”. Bem, o partido do vice de Lula, em 2002, já desmentia essa tese. Confiar em Lula, desapontar-se e, como punição, votar em Geraldo Alckmin é prova da volatilidade da consciência política do brasileiro.

Mas nada se comentou mais, em Porto Alegre, do que a migração de votos de Germano Rigotto para Yeda Crusius. Levando em conta a pesquisa do jornal Correio do Povo publicada no dia 29 de setembro, Rigotto perdeu, nos três dias até a eleição, exatos 296.131 votos, ou seja, quase 100 mil votos por dia. Se o eleitorado do governador Rigotto queria impedir um segundo turno entre ele e Olívio, conseguiu.

29.9.06

Debate-papo


Estava na cara que o presidente não participaria do debate de ontem à noite na TV Globo. Por que Lula iria se expor, faltando três dias para a eleição, com as pesquisas sorrindo e os candidatos de oposição mostrando as garras? Por que Lula teria a necessidade de confessar, frente a Geraldo Alckmin, Cristovam Buarque e Heloísa Helena, que não sabia de nada da corrupção que acontece dentro do seu governo?

Lula tem mais sorte que juízo. Os R$ 95,00 do Bolsa Família falam muito mais alto que os R$ 1,7 milhão do dossiê dos Vedoin ou mesmo os R$ 70 milhões da máfia dos sanguessugas. Esses R$ 95,00 é que deverão fazer do torneiro mecânico presidente até 2010 - e em primeiro turno. Garantidos esses reais no fim do mês, qual o problema se o presidente desconhece maracutaias ou ignora a importância de enfrentar na TV seus oponentes?

O presidente esvaziou, desqualificou o debate, transformado que foi em uma conversa de bar, um bate-papo amigável, os outros candidatos concordando entre si a maior parte do tempo. Só faltou a cervejinha. Apenas Heloísa Helena fincou o pé com mais força, ao atacar, além de Lula, os oito anos do governo FHC, respingando em Alckmin. De resto, parafraseando Cristovam Buarque, foi um debate doce, só que sem revolução nenhuma. Eymael é que gostaria de estar lá - porque, mais uma vez, Lula deixou a cadeira vazia.

(Foto: http://www.agorams.com.br/imagens/fotos/86752.jpg)

24.9.06

Saudades, saudades

Pego o jornal e lá está na capa a tradicional foto dos premiados se acotovelando no palco do Palácio dos Festivais, em Gramado. Outro dia, é um novo ciclo de filmes exóticos - sejam eles russos, iranianos ou brasileiros. Mais um pouco e já estão falando de novo no Oscar. Parece que é tudo só para me lembrar de que há dois intermináveis meses eu não entro em uma sala de cinema. Em outros tempos, era bem mais fácil conferir a programação e decidir o filme a que eu assistiria dali a meia hora.

Mas nem preciso ir muito longe: em fevereiro último, quatorze vezes meus artistas favoritos me viram no cinema, em meio ao público. Agora, que a rotina é outra, se mal consigo ver os filmes pipoca, que se dirá dos que estimulam as células cinzentas a funcionar e o espectador a ficar em casa? Saber que tantos filmes são exibidos para o meu lugar vazio no cinema me enche de uma melancolia, de saudades que aos poucos vou tentando matar.

Que saudades? Dos artistas do cinema, dos diretores, da obra de arte chamada filme. Foi para matar saudade de Kevin Spacey que fui ver o pipoquésimo “Superman returns”. Sou conservador demais, dirão alguns, mas nada se compara ao Lex Luthor de Gene Hackman, menos louco e (deliciosamente) mais irritante. E, claro, Brandon Routh, com a difícil tarefa de suceder a Christopher Reeve, prova que quem nasceu para Superman nunca conseguirá ser Clark Kent.

Matei saudades encontrando Elijah Wood na locadora, olhos esbugalhados atrás de fundos de garrafa e um campo de girassóis à volta. “Uma vida iluminada” – o que dizer, então, do filme, um tocante e bem-humorado road movie? Bárbaro o choque cultural mostrando que não apenas os judeus seguem em busca de seu passado e suas origens; os países surgidos do fim da União Soviética também vivem, à cata de algum futuro, uma crise de identidade.

Na locadora também cruzei com Ben Kingsley, que há tempos não encontrava. Quase irreconhecível atrás da maquiagem de Fagin, ele honrou o “Oliver Twist” de Roman Polanski, um belo e cuidado filme, mas que não me contagiou. Kingsley continua provando sua capacidade para encarnar qualquer personagem – em qualquer ponto do gradiente entre Gandhi e o ultraviolento Don Logan de “Sexy beast”.

Saudades, saudades. Ainda há muitas das quais tenho que me livrar. Natalie Portman havia sido um grato encontro em “V de vingança”, mas convenhamos: a voz de Hugo Weaving, apenas, não conta. Saudades, saudades. E pensar que há alguns meses eu me perguntava apenas por Winona Ryder. É por culpa minha, mas onde estão a camaleônica Cate Blanchett, o doce e tristonho olhar de Claire Danes, a versatilidade de Edward Norton, as mulheres, os homens e os gays de Almodóvar?

Até a semana passada, a trilogia dos mutantes de Charles Xavier ainda estava inconclusa para este pretenso cinéfilo, que se apraz tanto com o alternativo quanto com o arrasa-quarteirão. E, afinal, M. Night Shyamalan é um gênio ou um embuste? Como o Sean Hagen optou pela segunda alternativa, eu, que gosto do trabalho do cineasta indiano, lamentei ainda mais o fato de ter deixado “A dama na água” sair de cartaz.

Depois que os olhos de Luísa se abriram, literalmente uma nova vida surgiu diante de mim, e meus amigos de celulóide não poderão mais me ver sempre que quero. Essa arte chamada de sétima (e que seria primeira se de mim dependesse) está me ensinando outra, a arte da paciência. E espero ter a mesma paciência que vocês têm tido com minha ausência, meus saudosos amigos.

16.9.06

Auto-retratos


Dois olhos me olham da tela
E fixos adentram o peito;
Perguntam: agora o que é feito
Dos sonhos – os meus e os dela?

Os olhos me auto-retratam
Da moça que jaz impaciente;
As dores que aguçam a mente
São gêmeas das dores que matam.

Então, qual retrato de Frida
O artista já sem esperança
Da dor vencedora descansa
Vencido, vomita a vida.

E a arte (o artista é quem nota)
Na vida é única fresta:
A tela, este corpo que resta,
A tinta, este sangue que brota.


Tela: Frida Kahlo, "Sin esperanza". http://i24.photobucket.com/albums/c21/agentlain/Frida_Kahlo_without_hope.gif

12.9.06

Situação crônica

Às vezes, ele está mais calmo. Outras vezes, dói no ouvido. Esta semana tem doído tanto que não houve como não falar na pseudocrônica que Pedro Bial tem feito na viagem do Jornal Nacional pelo interior do Brasil. E imaginá-la por escrito, como está eternizada no site da Globo, chega a ser constrangedor.

Segunda-feira, em Belém do Pará, o âncora do BBB ia bem até dizer que a caravana JN estava tomada “pela febre da estrada”. Percebem-se os efeitos. Depois, o filósofo Benedito Nunes, entrevistado do dia, comentava sua distância dos grandes centros: “A margem sempre me dá um distanciamento. Eu sempre fui um marginal”. E a pérola bialesca, navegando pela margem errada: “Não há marginal mais doce e íntegro”.

Na terça, insisti outra vez em acompanhar a caravana, mais por inércia que por crédito às histórias que Bial tem a contar. O ônibus foi substituído por um barco, que margeia a Ilha de Marajó rumo ao rio Amazonas. E o sol torrando as células cinzentas: “No mapa o labirinto de braços de rios até parece fazer sentido. A olho nu, horizonte exagerado”. Bial começa a ver coisas: “Às margens, o povo em rebuliço acena para nós”. Eu pensei ter visto seis ou sete crianças acenando.

Achei válido, realmente interessante, o Jornal Nacional querer mostrar um pouco das paisagens, da cultura e das vozes do nosso país. Mas uma empreitada desse tamanho, para cobrir 8,5 milhões de quilômetros quadrados em apenas dois ou três minutos a cada dia, ao longo de dois meses, merecia mais informação, mais objetividade e menos enfeites com as palavras. O espectador perde seu tempo; Bial, oportunidades diárias de ficar calado; e a Globo, a chance de compor uma série jornalística memorável.

10.9.06

Pulsar

Procuro o pulsar de uma veia escondida
Saber-te lembrada nalgum mundo estranho
Alegra, mas vejo que, feito as ondas,
Amigo, os dias não são todo dia.

Aléias em flores, rasgadas com zelo
Amor pede tempo e ainda à espera
Dar vida às imagens, prazer indizível
Lá fora a turba anseia e se esquece
O sol do inverno, o aroma do campo
Inveja e ciúme, distância e desprezo
Saudade estampada nos braços abertos
Silêncio que grita oculta tristeza.

Transforma-se a vida, um nada após outro
E encontro o pulsar espontâneo dos dias.
Se muito o artista pergunta à lembrança
Responde a memória na folha em branco.

7.9.06

Sete de Setembro

Há alguns dias, encontrei, entre as páginas de um livro antigo, uma bandeira do Brasil. Ela era igual àquelas que recebíamos na escola e, ingenuamente, acenávamos na Semana da Pátria, sem termos noção do que aquele retângulo de papel verde-amarelo realmente representava. Para mim, eram manhãs ensolaradas de inverno, desfiles por obrigação, “Já podeis da Pátria filhos” e a vaga idéia de que vivíamos no melhor dos países.

No entanto, por mais forte que fosse a tão criticada imagem ufanista que os governos militares quisessem dar ao Brasil – sim, quando aprendi a ler e escrever o presidente era Médici –, uma sutil maré contrária acabou se mostrando mais poderosa que este país que vai pra frente. Afinal, eram oito anos de ditadura militar contra 472 de subserviência.

Não admira que patriotismo sempre tenha me parecido uma idéia confusa. Desfilar e cantar o hino contra a vontade mostrava tanto fundamento quanto associar o salesman Papai Noel a um Cristo despojado, nascido numa manjedoura. Tudo porque, entre um Sete de Setembro e outro, temos 364 dias de complexo de inferioridade.

Que sejamos uma terra de degredados, de cidadãos de segunda classe, de um rei que abandonou apavorado sua pátria. O problema é ainda nos sentirmos assim após tanto tempo. Afinal, os ingleses de segunda classe também cruzavam o Atlântico, rumo aos futuros Estados Unidos. Alguém um dia disse, e desde então, acreditamos, que o importado é sempre melhor. Nós, gaúchos, particularmente, chegamos ao ponto de nos acharmos melhores que o resto do país, salvos que fomos pela herança italiana e germânica. Racistas, nós? E brasileiro é raça?

Não é à toa que achamos ridículos ingleses e norte-americanos quando vestem roupas à la The Union Jack ou Stars and Stripes. O que se diz de alguém que ousa trajar verde e amarelo? “Parece uma bandeira do Brasil!” E qual é o problema? Ou quer me enganar que não ouvi um tom pejorativo na pergunta?

O tamanho de nosso patriotismo equivale ao das conquistas da Seleção. A Copa do Mundo é o único evento que vale a pintura dos meios-fios em verde e amarelo, e a certeza do hexa foi transformada, em apenas 90 minutos contra a França, na certeza de que nunca chegaríamos lá com aquele time.

Contribuem para essa visão nossa formação, nossa história, nossos governantes, mas também cada brasileiro, todos os dias. Temos um país rico, exuberante, com um povo inteligente, criativo – mas que não se ama. Não é o caso de louvar um ufanismo que existia para nos alienarmos e fecharmos os olhos para os desmandos de duas décadas de generais. É o caso de olharmos para nós mesmos e acreditarmos que podemos querer e ter o melhor para a nação. Se o ufanismo aliena, o baixo amor-próprio do brasileiro também, pois, fora o futebol, a Marquês de Sapucaí e a beleza feminina, não temos identidade, não procuramos nada do que nos orgulhar.

A solução? Isso passa pela educação, pela cultura, por décadas e décadas de melhor sorte nos governos. Séculos, talvez. A começar pela exigência dos pequenos direitos do cotidiano. Se não exigirmos, não nos será dado. Aos poucos, quem sabe, a idéia do direito de cada um possa alastrar-se e infiltrar-se na mente da nação que, lá fora, há de mostrar quem realmente podemos ser. Cidadãos que têm orgulho de seu país, seus símbolos e que podem legitimamente, no Sete de Setembro, comemorar sua independência das outras nações.

7.8.06

Longe

Mirando ao longe os campos que passam
Meus dedos agarram as curvas da estrada
Arados que deixam sementes de asfalto
E ligam da realidade dois nadas.

Desisto do tempo parado no tempo
Sereno não faço da ruga o disfarce
E busco nalgum olvidado futuro
Um dia que o dia esqueceu de lembrar-se.

Perdido num ponto entre o sonho e a noite
Pretendo acordar na suave aragem
Carícia invisível que tece cabelos
Ao anjo que faz companhia à paisagem.

Bailando alegre um sorriso viaja
Certeza de paz no olhar que inebria
Se é longe que as asas afagam a pele
É longe que quero sonhar noite e dia.

6.8.06

Instinto paternal

Leio na revista Época a respeito de uma pesquisa, feita na Inglaterra, com 8.400 homens que acabaram de ser pais. Destes, 3,6% apresentavam tristeza, irritabilidade e ansiedade, sinais do que poderia ser chamado de depressão pós-parto masculina.

Viro-me então para o lado. Ali, deitada, Luísa me olha atentamente enquanto leio, os braços agitando-se, como que buscando um mundo que, para ela, tem apenas três meses de existência. Custo a desviar de novo o olhar, pois existe algo além de curiosidade mútua ou do laço de sangue que nos une. Em algum recôndito do DNA, esse misterioso software da vida, a evolução caprichosamente reservou aos dois, pai e filha, uma estranha e irresistível afeição, pronta para aflorar no momento em que Luísa nascesse. Tão inexplicável quanto a idéia de depressão pós-parto masculina, eu tinha instinto paternal e não sabia.

Não que a chegada de minha filha não tenha trazido momentos de insegurança, cansaço, nervosismo ou “o que é que eu faço agora?”. No entanto, vejo, aqui e ali, que, se cada vez mais o homem toma parte da criação dos filhos, chegando a ser presença freqüente na hora do parto, em muitos casos ele ainda resiste à quebra dos tabus, recusando-se inclusive a segurar um bebê. Felizmente, a barriga que abrigou Luísa por oito meses me mostrou que eu não estava no segundo grupo.

Sei de homens que ridicularizam o efeito produzido pela chegada de um bebê a um ambiente onde há mulheres. Posso não ficar tão eufórico – eu nem acho que “todos os bebês são lindos”, como há quem diga. Luísa, entretanto, me ajudou a compreender o que acontece nessas ocasiões. Se ela me propiciou uma indescritível sensação de realização, alegria e orgulho quando pude levá-la ao vidro do berçário, o que se dirá da mulher, que tem na geração de um filho talvez seu maior desígnio, marcado em nível cromossômico?


“Existe amor maior?”, já me perguntou uma amiga. Não sei, pois, se cada amor é diferente, como sempre considerei, o amor da mãe e o do pai também não podem ser comparáveis. Eu mesmo não sabia o que sentiria no momento em que visse Luísa, e o amor por minha filha, que eu mal conseguia imaginar, ainda estou descobrindo dia após dia. Um misterioso e encantador recado que Luísa tem me dado sempre que ela se pára a me fitar os olhos, com suas janelas da alma brilhantes e azul-acinzentadas.

29.7.06

O poeta e o cata-vento

Num dia distante no tempo
A arte de um homem nascia
E o pássaro da poesia
Mostraria
As asas do seu pensamento.

Adulto, agora lamento
Que quando o poeta vivia
Menino eu não percebia
Que um dia
O verso virasse alimento.

Captando do nada o momento
E vendo o que mais ninguém via
Fazendo do ar alegria –
Quem diria?
O poeta é também cata-vento.

(foto: http://www.bmsr.com.br/diario/detalhe.asp?cod=181)

18.7.06

Não sou deste mundo

Olho para um rosto sereno e silencioso, mas ele não me é indiferente. Algo nele me perturba, como se no fundo me questionasse quem, afinal, eu sou - e afasta o meu olhar. Quando tiver a coragem de olhar, como fazia Oscar Wilde, diretamente para as pupilas, perceberei por que aquele rosto me perturba. Estarei olhando para alguém como eu, que não faço parte deste mundo.

Quantos rostos impassíveis não ocultam de fato um coração que sangra? Quantas felicidades exuberantes na verdade dizem, por Deus, estou só, olhem para mim? Diria mais, quantas felicidades há?

Vejo no mundo que me deram um tamanho desequilíbrio que eu, terráqueo, não me sinto em casa. Os olhos sérios e já esgotados dos transeuntes. As esquinas frias, duras e cinzentas. O choramingar da mulher frente às moedas na caixa de sapatos. O menino que bate na mãe. A cultura falsificada que entope as ruas e os nascedouros de uma arte legítima. Os sonhos, as histórias e a sabedoria que a criança deixou de adquirir porque o governo garante aprovação na escola. Dinheiro, vantagem, poder, corrupção, mediocridade. O mundo padronizado pelas grandes corporações. O amor obrigado. Amor? Não, obrigado.

Esse jeito mediano e igual de pensar e agir me horroriza - pela liberdade que se deixa perder e pelo fato de eu não ser aceito se não pensar mediano também. As palavras têm sentidos miúdos e as almas são pequenas, já diria Fernando Pessoa... Que espaço haverá ainda para o olhar romântico, a cultura espontânea e verdadeira, a liberdade de expressão, o trabalho no lugar da preguiça, a justiça no lugar da vantagem, a filosofia em vez do fast-food, a poesia em vez da azia?

Então olho novamente para aquele rosto silencioso que não me era indiferente. Uma luz distinta e inexplicável naquele olhar me diz que ele chegou a ficar perturbado, também, em minha presença. Afinal, uma identidade que se deixou perceber.

Aqui e ali encontro pupilas assim, leais mas questionadoras, ambiciosas mas generosas, doces mas com um saboroso tempero picante. No fundo, somos todos nós almas sedentas de justiça, de liberdade, de paixão - mas diminuídas por este mundo mediano que não nos pergunta a cota necessária para a sobrevivência. É quando encontro esses olhos que vejo que nós, terráqueos de outro mundo, não estamos sós.

12.7.06

Tide

Just like the gray clouds blue sky will bring,
Just like a new one follows the old tide,
Don't leave the kingdom without a king;
Time ought to help you to find your own side.

10.7.06

Faltou a poção mágica

Estamos em 2006... todo o mundo foi conquistado pelos romanos. Todo? Sim! Desta vez, nem os irredutíveis gauleses, comandados pelos guerreiros Henrix e Zidanix, conseguiram deter a Squadra Azzurra, tetracampeã mundial de futebol. E, pela primeira vez, tive que concordar com Galvão Bueno, que me inspirou a abertura deste texto. Por Tutatis!

Já ouvi dizer que o problema de Galvão Bueno é não ser narrador, e sim torcedor enquanto narra. Não acho. Se fosse torcedor, ele não teria tanta dificuldade para apontar o que todo mundo viu: desde o início da Copa do Mundo recém-terminada, a Seleção Brasileira não mostrou condições de chegar às finais, quanto mais de se dizer “a maior favorita” para vencer a competição.

Se houve alguma justiça na Copa da Alemanha, foi a desclassificação do Brasil. Pois, de resto, como escreveu Hiltor Mombach no Correio do Povo, em futebol não há justiça, há resultados. Lugares-comuns à parte, a Itália sagrou-se tetracampeã, mas, nas oitavas-de-final, classificou-se contra a Austrália com um pênalti, aos 47 do segundo tempo, que não existiu. E, na final, derrotou nas penalidades uma França muito superior com a bola rolando.

A Copa da Alemanha também foi a Copa que desclassificou uma seleção – a Suíça – sem que tomasse um gol. E a Copa em que o melhor jogador – Zidane – decidiu, no dia da aposentadoria, desferir contra o peito do zagueiro italiano Materazzi uma cabeçada que mais parecia um golpe de menir do gaulês Obelix. Que oportunidade perdida para o grand finale de uma carreira!

A Itália, por outro lado, desencantou e deixou a política “o importante é não levar gols” de Copas anteriores. Houve algumas boas surpresas – gostei de ver Portugal, República Tcheca, Austrália, Gana e Costa do Marfim. Mas a Inglaterra que nos deu o futebol não mostrou ao que veio; a Holanda abriu a caixa de ferramentas contra a equipe de Felipão e também levou o seu; a “Fúria” espanhola chegou com muito cartaz e pouca obra; Argentina e Alemanha, apesar da boa regularidade, ficaram pelo caminho... e o Brasil foi o campeão do salto alto, com destaque para Roberto Carlos ajeitando a meia. Como correr para a pequena área e jogar a bola para escanteio sem quebrar o salto 15?


Nenhum grande astro, nenhuma seleção que realmente contagiasse, nenhuma unanimidade. Na Copa de 2006, os campeões foram a organização germânica, a beleza dos estádios e os cartões vermelhos. E a certeza de que a geração Fenômeno acabou. Novos talentos já mostraram ao que vieram, e uma grande renovação, de nomes e de técnica, será necessária se nossa Seleção quiser ser hexa em 2010, na África do Sul. Afinal, está mais que provado que Galvão Bueno nenhum garante o título para o Brasil, por mais que ele repita que Ronaldo Nazário é um craque. Não só os gauleses irredutíveis, mas também a Seleção Brasileira desta vez deixou em casa aquela famosa poção mágica que a torna invencível.

6.7.06

Provérbio

Lágrima mole num coração de pedra dura
Bate, bate, bate, mas a dor perdura.

26.6.06

Fênix

Abro aos poucos minhas pálpebras insones
Acordadas por um sonho afogueado
– É o mesmo pesadelo que consome
O antigo coração amargurado?

Atravesso então um fino véu de fogo
Que em meu peito uma dúvida incita:
Será morte? Será vida? Um malogro?
Ou o ardor da alegria inaudita?

E as asas que vislumbro nessas chamas
Num instante são surpresa, são descanso;
Na carícia que em meu torso se derrama
Traz o pássaro da dor o seu remanso.

E ao ver-te, tão terrível quanto belo,
Digo: Fênix, se concedes teu abraço,
Faz de um toque incandescente meu castelo
E alegre a cada morte eu renasço.

21.6.06

Ói nóis aqui traveiz

Sim, as horas tornaram-se dias, os dias tornaram-se semanas, o outono deu lugar ao inverno – e deixei quase abandonado este meu “cantinho”, como já foi chamado uma vez (alô, Angela!).

Ao longo do último mês, as férias acabaram, os resfriados não, tive trabalhos para revisar... sem contar o pequeno milagre que passou a habitar nossa casa, e para quem toda atenção é pouca. Tudo isso foi me privando do delicioso ruído da inspiração fluindo dos dedos para o teclado.

Cenas do cotidiano, Oscar Wilde, Ronaldo Nazário, Dan Brown, Frida Kahlo e outros se debatendo contra as paredes de minha imaginação, esperando que alguma boa alma abrisse uma janela. Mas que salada. Não precisei de um ano escrevendo em um blog para perceber que minhas idéias são seres aeróbicos; se fechados muito tempo, podem morrer sufocados. A memória é o oxigênio do pensamento.

E a mais grata surpresa dessas semanas de ausência forçada foram os apelos, aqui e ali, para que novas palavras brotassem. Um deles veio de um amigo de longa data, o grande Xôn. Respondo que, de fato, nunca meu cantinho se propôs a ser um diário, mas, apesar de ser lobo de família, não preciso esperar as luas cheias para me manifestar. E ainda descobri, em minha prima emprestada, uma leitora diária do meu blog.

Honras como essas são uma chuva a regar em hora providencial o jardim. Encontrei, no escuro, a tranca que fechava o postigo e pus a respirar as fontes da inspiração. Eu nem sabia, mas meu reino também tem seus súditos. Que se faça sua vontade.

29.5.06

Não penses que não

Os pés delicados do inseto pousaram
Deixaram meu sonho e um ar colorido
Num vôo que só a lembrança imagina
Os dias quais chuva que bate à janela.

Buzinas e vozes na teia de cinza
Concretam no asfalto o afeto e a resposta
Escravos que são dos ponteiros do mundo
Saudade que inspira mas não se abate.

Candura, não penses que nunca me lembro
Do doce perfume das linhas traçadas
Apenas não quero que o tempo se faça
Minúsculo ponto ao sul de algures.

(Coda)
See no strings,
I see wings
When you fly -
butterfly.

18.5.06

When he's sixty-four

Não sou muito ligado em fofocas, principalmente as do meio artístico, mas uma, divulgada ontem, me interessou por mexer com meu imaginário. Quando, na adolescência, fui apresentado aos Beatles, uma divertida e irônica canção do álbum “Sgt. Peppers” projetava um futuro até então remoto:

Will you still need me,
Will you still feed me,
When I’m sixty-four?

Uma entrada a dois na terceira idade, com cartões no Dia dos Namorados, viagens no verão e uma vida pacata, incluindo tricotar suéteres e arrancar as ervas no jardim, era pintada por Paul McCartney em "When I'm sixty-four”. "Quem poderia pedir mais?", espeta a letra da música. E eu sempre me perguntava: como seria quando Paul chegasse a essa idade? Ontem, exato um mês e um dia antes de o ex-beatle completar 64 anos, ele decidiu se separar de Heather Mills, com quem estava casado desde 2002.

Oficialmente, o casal se separou devido a “intrusões da imprensa” na vida particular. Entretanto, mais irônica que a canção – “Se eu só voltar às quinze para as quatro/ Você trancaria a porta?” – é a informação de que diferenças no estilo de vida teriam contribuído para a separação: Heather insistia em seu trabalho em campanhas de caridade, enquanto McCartney procurava justamente a vida caseira cantada (e questionada) em “When I’m sixty-four”.


A vida imita a arte? Ou esta é que já previa uma realidade que a vida acabaria provando quase 40 anos depois?

11.5.06

Um pequeno milagre


Atada por esparadrapos a uma mesa, em posição de crucificada, está uma mulher. É a minha mulher. Ela está acordada, mas não sente nada ao lhe abrirem o ventre. A cena, brutal, parece de filme de terror, mas, na realidade, acontecia em função de um pequeno milagre. Eu estava lá. E eu me sinto privilegiado porque pude ver esse milagre; porque nem todos conseguem resistir, in loco, até o fim. Presenciar o multiplicar da vida é chocante. Um momento tão especial que me vinham faltando as palavras para descrevê-lo.

Algumas horas mais tarde, esse pequeno milagre abriria seus olhos brilhantes e acinzentados, provavelmente sem poder enxergar ainda direito, e sem saber que era o centro das atenções. A esse pequeno milagre, decidimos chamar Luísa – um nome bonito, nome de uma grande amiga, nome que significa “guerreira”. Minha filha. Há tão pouco chegou, e essa diminuta guerreira já havia conquistado o reino de nossos pensamentos. Frustrações, alegrias, inseguranças, contentamentos, irritações, sonhos... sentimentos tão variados sei que teremos por sua causa; mas o 26 de abril, dia desse pequeno milagre, foi um dos mais felizes de minha vida.

9.5.06

Outonal nº 2

Andando por uma rua cinzenta de maio, percebi que o mesmo céu encoberto que apressava a noite deixava no peito uma estranha sensação, ao mesmo tempo calma e agoniada. Era outono, terra em que, ao sul do Trópico de Capricórnio, os dias se tornam cada vez mais curtos – e os espíritos mais introspectivos encontram, ao olhar à janela, o seu espelho.

No calendário da Revolução Francesa, os meses do inverno tinham som pesado e compasso longo (nivoso, pluvioso, ventoso). Mas esse som comprido e fechado, no português, não está no nome do inverno, e sim no do outono. Ou-tonnn-no. Som cavo, retumbante, de porta que bate, de casa vazia; de tempo fechado, de coração contrito.

Deu-se ao outono uma idéia triste, de morte, decadência: o outono da vida. O outono sempre foi o oposto da primavera; o primo pobre da estação das flores e dos amores. Não importa em qual estação se tenha nascido, sempre será perguntado quantas primaveras alguém completou. Como se tivesse nascido na primavera – ou como se o nascimento fosse, em qualquer mês, a primavera da vida.

Vejo o outono com outros olhos. Outono, a época da frutificação, sempre foi, para mim, vida e alegria. Nasci no terceiro dia de um outono. Mesma estação do ano em que nasceram minha mãe, meu irmão e minha filha. Mesma estação, neste hemisfério, em que se comemora a Páscoa – o dia do renascimento.

Chocolates à parte, lembro a Páscoa sempre como uma tarde de domingo ensolarada, nem fria, nem quente, na casa de meus avós. Não é à toa: em Porto Alegre, março e abril costumam ser meses de pouca chuva e dias bonitos, reforçados por um Sol oblíquo que deixa as cores mais vivazes. E os dias curtos valorizam ainda mais essas poucas horas de luzes e cores.


Quando as nuvens encobrem o céu, como naquela cinzenta rua de maio, é inevitável que as poucas horas de sol (em muitos dias nenhuma) deixem no coração um traço de melancolia. Mas aí também o outono frutifica: nessa hora os espíritos introspectivos sentem-se mais à vontade para se expressar – e a melancolia se faz poesia.

6.5.06

Fiquei bamboocha

O novo sempre vem, já cantava Belchior, mas... será que só porque é novo é melhor? Pelo menos é uma idéia da qual não podemos escapar, desde que o fogo foi descoberto e a roda inventada: tudo que é novo ou desconhecido chama a atenção. O princípio da curiosidade humana! O “x” da questão é por quanto tempo essa atenção será mantida. E a tolerância que nós, consumidores, temos apresentado a esses produtos ditos “novos” acaba criando uma roda-viva, pois quanto mais rápido descartamos um produto novo, mais rápido o mercado cria produtos novos novos.

Nem todo produto precisa ter a durabilidade da garrafa da Coca-Cola ou do logotipo da Nestlé ou da Ford. Nem todos precisam atravessar os séculos. Mas já há algum tempo essas mesmas antigas empresas vêm criando não imitações de outras marcas, nem produtos diferentes, nem tampouco embalagens novas para o mesmo produto, mas produtos em que o “novo” baseia-se no antigo para que o público creia em seu “novo” valor. Em outras palavras, auto-imitações.

Nem se fale em programas de televisão ou modelos de automóveis (alguém aí sabe identificá-los?). O ramo da alimentação parece ser o campeão. A finada Cherry Coke foi um sinal do que estava por vir. Tempos depois, elefantes coloridos desfilavam na propaganda da “Fanta sabores” – como se laranja e uva não fossem também sabores.

Daí em diante, virou moda as empresas imitarem (e mal) a si mesmas: Bis Lacta sabor laranja, Sonho de Valsa branco, Prestígio sabor chocolate (!!!!)... Qualquer dia a Lacta me vem com um Galak preto. Não, eu não duvido de nada. Tanto que a Coca-Cola conseguiu inventar a Fanta sabor laranja vermelha. Alguém ficou bamboocha, ou eu ou alguém lá da fábrica.

Essas imitações, aposto, não sobreviverão muito tempo, porque inferiores aos produtos originais. O “novo” sempre chama a atenção do consumidor, ansioso para experimentar algo diferente. Mas as verdadeiras boas idéias são minoria, e isso vale também no mundo das marcas e dos produtos.

Por sinal, tomar Fanta e ficar bamboocha... ainda não faço idéia do que isso significa. Mas deve haver qualquer coisa nessa fórmula, temos que investigar.

4.5.06

Os olhos de Winona

Por onde andará Winona Ryder?

A pergunta me veio por um fato absolutamente prosaico. Em um ônibus, entre tantas pessoas a se espremerem no corredor, reparo em uma adolescente: não é só o mesmo jeito espivetado, agitado; ela é realmente parecida com Winona – em especial pela característica mais marcante naquela talentosa e bela atriz: os olhos. Será que a moça faz idéia disso?

Talvez não. A virada de milênio não foi nada boa para Winona, e todos os seus grandes sucessos ficaram na época da infância daquela mocinha. Época essa em que eu recém começava a me tornar cinéfilo e não me considerava ainda fã de artistas de cinema. Entre as atrizes, mais tarde, acabei me tornando fã de algumas: Claire Danes, Cate Blanchett, Scarlett Johansson... a primeira de todas, entretanto, foi Winona Ryder, porque aqueles belos olhos, escuros, grandes e expressivos, pareciam atuar junto com ela.

Olhos curiosos das adolescentes que ela interpretou em “Os fantasmas se divertem” e “Edward Mãos de Tesoura”; olhos determinados de go-getter, mas ainda com alguma inocência, das jovens de “Adoráveis mulheres” e “As bruxas de Salem”; olhos doces da moça que está ampliando seus horizontes em “Colcha de retalhos”.

Entretanto, por algum motivo, depois de trabalhar com Tim Burton, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese e de receber duas indicações ao Oscar, os olhos de Winona têm brilhado menos, assim como sua estrela. Envolveu-se em escândalos, foi presa por roubo, foi indicada à Framboesa de Ouro... na última vez que a vi, em 2002, em “Simone”, ela interpretava, ironicamente, uma atriz que abandona as filmagens – e era coadjuvante de uma atriz virtual. Olhos furiosos, mas sempre belos e expressivos.

O trabalho mais recente de Winona se chama “A scanner darkly”, uma animação de ficção científica que deve estrear no Brasil em agosto. Richard Linklater na direção e Keanu Reeves como protagonista prometem. Quem sabe esteja aí uma oportunidade para Winona Ryder brilhar de novo nas telas – e aquela mocinha descobrir como seus olhos se parecem com os de Winona.


(foto: www.kaputz.com)

3.5.06

Operação mãos limpas


Por esta o Lula não esperava. Duas semanas depois de o Brasil atingir a “auto-suficiência” na produção de petróleo, tão martelada em publicidade da Petrobras, o governo de Evo Morales decide nacionalizar o setor petrolífero e de gás na Bolívia, o que quer dizer: todas as empresas estrangeiras que exploram petróleo e gás natural naquele país terão 180 dias para se submeter ao decreto – ou deixar o solo boliviano. E a maior dessas empresas é justamente a Petrobras, que responde por 15% do PIB da Bolívia. De tão grande, nossa maior estatal assumiu ares de multinacional privada, pois, é claro, não lhe agradaram as medidas do presidente Evo Morales, provando que a pimenta na boca dos outros arde menos.

O governo brasileiro já deixou bem claro que, se a auto-suficiência pode economizar dólares com importação de petróleo, isso não vai fazer diferença nenhuma no nosso bolso: os preços são regidos pelo mercado global e não podem ser reduzidos só por causa da auto-suficiência. Então, que valor efetivo ela tem? Apenas o dos dólares antes gastos na importação, que ficam em Brasília mesmo, à disposição para mordomias ou projetos de lei em ano eleitoral. Em que pese o fato de que essas verbas não saiam do Brasil, esta é uma auto-suficiência tão de fachada quando aquele evento comemorado todo dia 7 de setembro.

Enquanto o exército boliviano ocupava as instalações da Petrobras no país vizinho, o presidente da estatal, José Carlos Gabrielli, reagia, considerando “unilateral” e “inamistosa” a atitude de Evo Morales. Uma iniciativa nacionalista séria, um golpe de marketing ou um lance populista, como vem dizendo a imprensa internacional? De qualquer forma, uma interessante oportunidade para acompanharmos a diplomacia do governo brasileiro diante de uma saia-justa. Se ele defender unicamente os interesses da Petrobras, põe em jogo os ideais de soberania que sempre foram bandeira do PT. E mais de 50% do gás natural que o Brasil consome vem da Bolívia – seu fornecimento poderia ser comprometido se houvesse um atrito econômico entre os dois países.

Por isso foi convocada uma reunião de emergência entre Lula, Evo Morales e os presidentes da Argentina, Nestor Kirchner, e da Venezuela, Hugo Chávez. Prudentemente, o governo brasileiro divulgou ontem uma nota defendendo o direito soberano da Bolívia de nacionalizar as riquezas do seu subsolo. Pelo menos isso, senhor presidente. Senão, o gesto das mãos sujas de petróleo, repetindo o de Getúlio Vargas em 1952, quando a Petrobras havia sido recém-criada, cairia no vazio.


(foto: Último Segundo/Agência Brasil)

16.4.06

Outonal

I
Um sol preguiçoso me deu boa-noite mais cedo
E as primeiras gotas avisam do choro das nuvens
Abrindo um tapete de náilon por sobre a cidade.

As folhas farfalham sozinhas nalgum calendário
Ouvindo o reflexo das luzes no preto do asfalto
E eu fecho a janela e me engano ao som da milonga.

II
Parobé, praça por quê?
E o chalé ninguém mais vê.
A luz antiga agora ilumina
A tenda, a cola, o negócio da China
E velhos tristonhos sem o que fazer.

15.4.06

En passant

Algumas coisas, nesses últimos meses, mereciam comentários, mas ficaram para trás.

Poderia ter falado daquela loja que, no fim do ano, forrou Porto Alegre e Florianópolis com outdoors onde se lia “Fuck you 2005”. Será que o balanço daquela empresa, no ano passado, foi tão ruim assim? Puderam gastar dinheiro com uma campanha tão educativa! Desde que seja importado, até palavrão é chique. Demorou um pouco, mas a loja, que diz em seu slogan nos entender, precisou de uma decisão do Ministério Público de Santa Catarina para compreender que havia passado dos limites e retirar os outdoors.

Poderia ter falado da moda dos mistérios na Internet: na contramão da sinceridade irrestrita dos blogs, muita gente descobriu que a melhor forma de chamar a atenção é não abrir o jogo. Daí tantas pessoas se identificando apenas com pseudônimos, perfis misteriosos... fotos, nem pensar. Decididamente, a “terceira via” da comunicação pessoal pela rede de computadores.

Poderia ter falado que não consigo compreender o que a revista Set vê de tão bom no “King Kong” de Peter Jackson. Apesar da perfeição na reconstituição da Nova Iorque dos anos 30 e do respeito ao filme original, nada explica as três horas de filme, quase a metade entre dinossauros e insetos gigantescos. Os heróis escapando ilesos de um estouro de dinossauros, então, foi demais para minha paciência. Certo estava o espectador que, assistindo ao trailer, eu ouvi dizendo, para riso geral da platéia: “Que mico!”.

Poderia ter falado sobre tantas coisas... mas, nestes tempos de agenda longa e memória curta, o relógio é, geralmente, mais veloz que a palavra. Como já disse a uma amiga, estou precisando de concentração e, principalmente, determinação. Para que os fatos não continuem merecendo apenas um parágrafo assim, en passant.

1.4.06

Improviso

No meio da confusão, a lucidez.
No meio da bruma, o vôo livre.
Desfiz o preparo, vesti-me improviso;
E o caminho certo era também o mais leve.

31.3.06

Semeatura

Plantei sementes de pedra
No meu canteiro de obras
E belos botões floresceram
De um, de dois, de três quartos.

A quem pagar pela vista
Um pouco de verde ofereço
Enquanto não for semeado
Com arquitetura mais bela.

28.3.06

O centrão da pizza

A que ponto chegamos. Um deputado estadual do PFL gaúcho aparece em propaganda na TV pregando um Estado “mais igualitário, mais liberal”. Ora, ele deu o caráter de sinônimo a duas condições político-econômicas incompatíveis. Afinal, o “Estado liberal” só é igualitário em dar mais condições àqueles que já as possuem.

Repetindo: a que ponto chegamos. Um dos partidos mais comprometidos com o capitalismo industrial e financeiro apresentando-se como via alternativa a mais quatro anos de descrédito na política, desta vez propiciados pela desilusão na estrela amarela do PT.

Ontem, pediram demissão (apenas) o ministro da Fazenda e o presidente da Caixa Econômica Federal, pelo envolvimento na quebra do sigilo bancário de um caseiro. Em que mãos estamos? O governo e os bancos já giram com nosso dinheiro, obtendo lucros absurdos; agora deram para girar com nossas informações particulares.

É bem verdade que o escândalo atingiu tamanha proporção que não restou alternativa aos envolvidos na quebra do sigilo senão a demissão. Mas quero ver se eles serão realmente responsabilizados pelo que fizeram. Se o presidente da CEF pegar os seis anos de prisão imputáveis ao crime que confessou, eu sou o sultão da Gongólia. Afinal, apesar da fama que a pizza tem como parte do cardápio paulistano, as melhores casas do ramo parecem ficar em Brasília.

O problema é que, se não faltam boas opções de pizzarias no mercado, o mesmo não acontece com os partidos políticos. Em vinte anos como eleitor, já vi uma ciranda de governos no Palácio Piratini, outra no Planalto – e pouco mudou. Enquanto o Partido dos Trabalhadores mantinha (alguma) coerência em dezesseis anos no governo municipal, eu via Lula, de operário a presidente, podando a barba e o discurso para que a corrente ideológica dominante o aceitasse no poder. Nesse tempo, a ditadura militar foi apenas substituída pela civil. Em termos de dignidade e cidadania, pouco se conquistou.

No final, em quem confiar? No PSol? Na hipotética “terceira via”, de existência ainda não comprovada? Não parece haver direita e esquerda; estas pertencem ao campo teórico. A prática é a do centrão todos-corporativamente-juntos, aparentando algumas diferenças para efeito de perfumaria, como nos partidos políticos norte-americanos.

Algumas coisas melhoraram, sem dúvida. Há trinta e cinco anos, este texto mereceria os porões do governo Médici. Entretanto, a desilusão persiste. Como a jornada de 14 de julho de 1789, em Paris, que, ao final, resultou apenas na troca de uma elite por outra. Por isso o velho é apresentado como novo (de novo) na TV. E muita gente ainda acredita.

26.3.06

Três ponto nove

Nem parecia. Um dia absolutamente normal para a época – com chuva, mas quente, como se o verão ainda quisesse resistir ao outono que já começou. Um dia obscuro no calendário, esse tal de 23 de março, perdido entre o Carnaval e a Páscoa, sem nada de especial, não fosse meu aniversário.

Eu sempre me sinto esquisito nesse dia. É como se fosse mais propriedade minha que dos outros. Se Tiradentes, Nossa Senhora, pais, mães, crianças, todos têm um dia, por que não posso ter o meu?

Fico a pensar: 25 de dezembro é o aniversário de Jesus Cristo; 1º de janeiro, o aniversário do tempo – pelo menos em nossa cultura. Mas ambos são convenções, criadas em nome de uma incerteza. O aniversário de uma pessoa, não. É um aniversário de verdade. Foi nesse exato dia que se nasceu, e nessa exata data se completam tantas voltas da Terra em torno do Sol. Uma marca a mais, definitiva, em um trajeto cuja distância total é ignorada. É ou não para mexer com a cabeça da gente?

Conheço quem não comemora aniversário; outros vão mais longe, nem sequer admitem que a “data fatídica” venha a público. E essas idades, naturalmente, acabam sendo as mais comentadas. De minha parte, até agora isso não me incomodou. Mas, pensando bem, a idéia assusta: um ano para os 40. Porque, se toda mudança de década é em certa medida atemorizante, esse 4 olhando para mim, aproximando-se, ao mesmo tempo parece afastar aquela idéia de juventude propalada na mídia. O 3 ainda vá lá. Agora, o 4?

E foi só bater na trave dos 40 para ouvir falar nos famigerados enta. Fosse na língua de Shakespeare, seria melhor, pois os ty teriam começado mais cedo, aos 20. E agora? Rendo-me às fórmulas de auto-ajuda, aos eufemismos? “Não é idade, é experiência”, “A vida começa aos 40”... Isso eu saberei daqui a um ano. O que eu sei, agora, é que o melhor de chegar a certa idade é perceber que não se é, por dentro, tão velho como imaginávamos quando crianças.

Meus pais, agora, têm a mesma idade de meus avós quando eu estava no primário. E, de alguma forma, eles são mais jovens. Na cultura ocidental, a morte ainda é um tabu e o jovem é cultuado – o que também tem seu lado positivo, pois os novos tempos têm incentivado hábitos diferentes, como viagens, exercícios físicos, roupas mais joviais, e tudo isso se reflete na idade aparente.

O tempo, depois de um certo tempo, parece andar mais rápido, mas também é cada vez menos absoluto. Na reta final para os enta, prefiro ter uma idade para cada momento. Nas horas tristes, posso ter 70 e, nas alegres, voltar aos 17. Mas isso já é outra história...

(Em tempo: à procura de um referencial importante, descobri que 23 de março é Dia do Meteorologista, aniversário de Florianópolis e data nacional do Paquistão. Por aqui, meu dia ainda é uma data perdida no calendário...)

15.3.06

Habitas

Por que habitas o meu pensamento?
Por que não posso expulsar-te
Se não hesitaste em fazer-me o mesmo?
É doce lembrar o caminho trilhado
Quando se é o caminhante –
Eu era apenas a areia pisada.

Diva do amor impossível
– pois nunca irás conhecê-lo –
A paz não existe em nossa fronteira.
Ergui um pendão com a cor da pureza
E aquela ferida de novo sangraste
No fio de uma alma irresponsável.

Por que habitas o meu pensamento?
Por que vieste acordar minha noite
Se nem te lembravas de quem nunca esquece?
Afasta-te agora, apaga tua luz
E deixa uma noite que eu mire no céu
Se um sonho ainda vaga por entre as estrelas.

13.3.06

Meu dia de fúria

Ontem, em um supermercado, o frasco de Toddy com 400g estava em promoção por R$ 2,89. Fui conferir se havia em sachês, que costumam oferecer 500g pelo mesmo preço de 400g. Para minha surpresa, os sachês custavam R$ 2,98. Ora, isso não fazia sentido. Se a embalagem do sachê dizia “500g pelo preço de 400g”, quer dizer que ela deve custar o mesmo preço que se paga por 400g, não é mesmo? Que explicação se dá para esses R$ 0,09 de diferença? Coloquei cinco sachês no carrinho e, após pagar as compras, procurei a gerência.

Um funcionário do supermercado me disse que, além de o preço da promoção depender de “negociação” do supermercado com o fornecedor, sachê e frasco são “produtos diferentes”, por isso o preço maior. Ora, não é o mesmo produto que está no frasco e no sachê? E mesmo que aceitemos a justificativa do funcionário, que referencial de preço a frase promocional do sachê vai utilizar, se o supermercado não oferecia sachês com apenas 400g?

O que acontecia naquele momento era óbvio: o consumidor perdia a “promoção” do sachê para que se criasse a ilusória “promoção” do frasco. Em outras palavras, alguns produtos ficam mais caros para que paguem os que estão mais baratos. O comerciante, assim, sempre ganha, e eu não preciso dizer quem sai perdendo.

Estava em um supermercado que praticamente monopoliza o setor em Porto Alegre. Quem é daqui sabe de que família a serviço da comunidade estou falando. Não acredito que essa rede tenha qualquer dificuldade na hora dessas, digamos, negociações. Não é à toa que não precisei de mais de um minuto para convencer o funcionário a me devolver os R$ 0,45 a que eu tinha direito. E ainda levei, de lambuja, mais um sachê de graça para casa — para que o funcionário pudesse se ver livre de mim.

Pode parecer ridículo brigar por tão poucos centavos, mas não é isso que está em jogo. Não são os centavos o problema, mas a dignidade. Se parasse para reclamar de tudo que vejo, eu enlouqueceria. Mas de vez em quando é necessário ter um surto de indignação e fazer como Michael Douglas no filme “Um dia de fúria”. Somos tratados como se estúpidos fôssemos porque permitimos. Se mais pessoas se preocupassem com esses pequenos assaltos do dia-a-dia, os comerciantes também não explorariam tanto o consumidor.

Uma vez precisei ficar mais de meia hora pendurado em um 0800 para convencer a gerente do melhor banco do mundo a estornar R$ 0,10 debitados, sem explicação, da minha conta. De quantos o banco não tirou essa quantia “por engano”? Convenhamos, são só dez centavos, mas são meus, não do banco. A mesma coisa diz respeito à compra no supermercado. O vendedor conta com um consumidor passivo e letárgico, e não com uma reação ridícula e mesquinha como a que eu tive. Por isso as coisas seguem como estão. Entretanto, mais que se livrar de mim, o funcionário do supermercado provou uma coisa: no fundo, no fundo, que nem Michael Douglas, eu tinha razão.

11.3.06

(Fal)cidade

Não existe referência
Nas placas desta cidade:
A Estrada da Aparência
Contorna o bairro da Verdade.



(www.ximnet.com.my)

8.3.06

No espelho

Na úmida névoa de um dia cinzento
Meus passos avistam um vulto achegar-se
E os dedos que quase tangiam a pele
Quedaram apartados num toque de vidro.

Oprime meu peito ausente palavra
Que acorra e descreva a dor da alegria
Desfeita ao ver tão de perto e somente
Tocar a imagem do que não seremos.

É um sonho que vejo, tão belo e tão triste
O vulto evanesce num vôo distante
E o súbito ardor que aquecia minh'alma
Condensa em forma de lágrima a névoa.

2.3.06

A poetisa

"Po-e-mas-no-ô-ni-bus" - recita
A menina sentada a meu lado
Mirando um cartaz na janela.
Um poema de amor ele dita
À menina de olhar azulado;
Que novo universo desvela?

Gravei na memória essa cena;
Versos, metáforas, rimas,
Amor, ó palavra imprecisa...
Que dirá o coração da pequena?
No fundo a esperança que anima
É ouvi-la dizer: serei poetisa.

28.2.06

Um golpe de sorte?


Impossível não se perguntar se o fato de ter sido filmado na Inglaterra não contribuiu para que “Ponto final” (“Match point”) tenha ficado tão bom. Segundo o próprio diretor, a escolha de Londres e não de Manhattan para as filmagens foi menos artística do que financeira; no entanto, é inegável que a mudança de ares fez bem ao mais recente trabalho de Woody Allen. O cineasta, que raramente filma longe de Nova York, atravessou o oceano para contar uma história sobre amor, carência, traição, sorte e ilusão – ou melhor, sobre até que ponto alguém pode iludir aos outros e a si mesmo para manter uma determinada condição de vida.

Em “Ponto final”, Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers) é um jogador de tênis que decide trocar a carreira de competições por ensinar o esporte em clube da classe alta londrina. É lá que ele muda de vida novamente, pois conhece Tom Hewett (Matthew Goode) e sua irmã, Chloe (Emily Mortimer). O namoro e posterior casamento com Chloe acabam rendendo a Chris um emprego na empresa do sogro milionário, bem como uma paixão por Nola Rice (Scarlett Johansson), noiva de Tom.

Nessa partida de duplas que é o quadrilátero amoroso em que Chris se envolve, o jogo de tênis é apenas uma metáfora habilmente empregada por Woody Allen para discutir a importância de certos acasos em nossa vida – que podem ser (ou não) golpes de sorte. O cineasta joga também – e prega algumas deliciosas peças no espectador, prova de que, em seu 36º filme, Allen ainda não esgotou sua capacidade criativa, como poderia demonstrar a década em que ele ficou sem emplacar um filme digno de suas obras-primas dos anos 70 e 80.

Além da mudança de ares (e de sotaque, visto que o elenco, com exceção de Scarlett Johansson, é britânico), “Ponto final” passa ao largo das auto-análises verborrágicas que caracterizaram tantos filmes de Allen, mas mantém a tradicional qualidade da narrativa. Apoiado ainda em um elenco impecável, “Ponto final” deu a Woody Allen sua 14ª indicação para o Oscar de Roteiro Original (a última havia sido em 1998, por “Desconstruindo Harry”), além de quatro indicações para o Globo de Ouro – incluindo Melhor Filme (Drama), Melhor Diretor e Melhor Roteiro. Mero acaso? Provavelmente não.


foto: www.rottentomatoes.com

19.2.06

Cuidar do tempo

Já ouvi dizer, certa vez, que a única coisa verdadeira é o passado. Frase pesada, ela tocou-me – não por eu concordar com ela, mas porque convidava a uma reflexão. A primeira idéia, mais óbvia, era: o que se poderia dizer, então, do momento presente? Uma inglória luta do tempo, que, segundo após segundo, torna-se inexoravelmente passado? Ou, se de nada mais valem o presente e o futuro, por que nos preocuparmos em fazer deles um passado digno?

O próprio soar da frase parece arrastar-se, como se fosse dita por um velho carrancudo, de barba hirsuta e montando guarda a um baú de segredos. O tempo encerrado em si mesmo, não apresentando alternativa futura. Nada mais estranho à nossa época, voltada a um presente e um futuro cheios de possibilidades e conquistas. O passado que fique no passado, pois o que está por vir é sempre melhor. Pelo menos é o que os comerciais de TV não cansam em nos dizer.

Aí reside o perigo de se olhar para o futuro sem cuidar o passado. Estamos criando, pela televisão, pela publicidade, pelos modismos, um mundo despreocupado com o que fazemos, pois o que não deu certo ficou para trás – como se o futuro fosse capaz de se arranjar sozinho. Esse mundo, em uma palavra: irresponsável.

Um mundo de protoempresários nas salas de aula, mestres na arte da sedução no pátio da escola e pequeninos tiranos dentro de casa, pois desconectados do mundo real, a começar pelo contato com pai e mãe. Um mundo em que quem não for um realizado executivo será um esportista sarado e cheio de amigos felizes ou um destacado advogado, defendendo alguma empresa da maldita indústria da reclamatória trabalhista. Um mundo em que a filosofia, as relações humanas e a preservação do ambiente são menos importantes que a cor da estação, as formas legais de burlar a lei e quem vai para o paredão do Big Brother.

A velocidade da transformação em nosso mundo também aumenta a velocidade de desconexão com o passado. Se, conforme o IBGE, metade da população brasileira tem menos de 25 anos e 85% vive nas cidades, quantos de nós conhecem o tempo em que as famílias ficavam conversando nas varandas à noite enquanto as crianças brincavam na rua? Ou o tempo em que o filho do vizinho entrava em casa pulando o muro, o tempo em que se podiam contar as estrelas no céu?

Não é à toa que o passado parece desinteressar. Ele não foi vivido para que se saiba o quanto ele era bom em determinados aspectos. Se dizer que a única coisa verdadeira é o passado nos desconecta com a realidade, menos não acontece se negarmos o passado, pois deixamos de ver o quanto este mundo poderia ser melhor se não nos importássemos apenas com o presente e o futuro.

Não neguemos a tecnologia, os novos estilos de vida, a eterna dinâmica da cultura, das línguas, das artes. Mas não deixemos de lado as coisas simples, o romantismo, a história, a música, o pensamento, o pôr-do-sol, o sorriso, o contar as estrelas. Fazemos parte do tempo, passado, presente e futuro; descuidar dele seria descuidar também de nós mesmos.

14.2.06

O sentimento dos sentimentos

Algo se inquieta na fina e imperceptível linha que une o espírito, o cérebro e a mão. Essa linha começa a vibrar e, quando o tanger do espírito é compreendido pelo cérebro, às vezes a mão consegue traduzir o que ouviu – e vertem as palavras. Um inseto que se debate na teia da aranha? Pássaros que se agitam prenunciando a tempestade? O mar que recua avisando da onda que chega? Ora, quem dera esse grito fosse sempre escutado.

Porque é sempre maior a inquietude não percebida. Esta, a força-matriz da expressão – e muitas vezes também seu combustível – não encontrou quem a traduzisse, e o papel ficou em branco. Aprendo então que os sentimentos também têm sentimentos. Eles têm vergonha, medo, raiva, por vezes recusam-se a falar, aumentando em si mesma a inquietude. Por isso o autor calou-se tanto tempo. O náufrago deitou à água garrafas vazias e as poucas mensagens que mordiscaram a linha ou chegaram atrasadas, ou não se fizeram entender. Um monólito estava enterrado, enviando sinais fortíssimos, e eis que, uma vez desenterrado, nós, exploradores do espaço, quedamos ensurdecidos.

No entanto, algo faz sentido no que agora escuto, e a própria luz que apaguei se acende para mais um ou dois parágrafos. O que faltou foi determinação. A linha toca melodias diferentes conforme o compositor. Minha música ainda é tímida, parece sem vigor, sem emoção. É o sentimento dos meus sentimentos. Basta minha inquietude olhar para os lados mais firme, mais determinada, e verá que a poesia continua repousando ao lado; o milagre das palavras ainda está ali mesmo, esperando para acontecer.

11.2.06

O monólito

Catando inspiração para um texto de retorno, eu a encontro não em palavras, mas em notas musicais. Trilha sonora de “2001 – Uma odisséia no espaço”, “Requiem”, de Ligeti – um coro que serve de fundo para as aparições do monólito. E eu achando que se passariam eras até meus próximos escritos! Menos, menos. A realidade é que estava precisando de uma arejada. Já se passaram quatro anos inteiros daquele para o qual Arthur C. Clarke projetou uma viagem tripulada a Júpiter, mas muita coisa continua igual aqui no microuniverso.

Curioso que uma obra musical chamada “Requiem” tenha servido para os encontros entre o homem e aquela pedra misteriosa, que, no filme de Stanley Kubrick, parece estar presente nas grandes transformações na vida do homem – inclusive em um “renascimento”. Um contra-senso? Nem tanto: concebido antes de o homem ser o que é, o monólito parece ao mesmo ser de uma tecnologia que nunca alcançaremos. Ele absorve toda a luz que recebe, emite ondas eletromagnéticas e um som ensurdecedor e foi moldado nas exatas proporções 1x4x9. Uma das grandes idéias da história do cinema, pois, com a (diríamos hoje) modéstia dos efeitos especiais de “2001”, Kubrick pôs na tela um universo misterioso e criou um dos mais importantes filmes de ficção científica de todos os tempos, ainda instigante, após quase quarenta anos.

O que era o monólito? Provavelmente obra de seres inteligentes, mas o mistério que cerca sua existência, seu aparecimento e seu papel ao longo da “Odisséia no espaço” apenas confirma o que o próprio Kubrick afirmou: se alguém pudesse realmente explicar “2001”, ele, Kubrick, teria falhado. Afinal, não é um filme para explicar ou ser explicado, e sim para questionar nossas origens e nosso futuro.

1.2.06

Premonitória

Certas cenas de filmes que ficaram esquecidas tornam-se cômicas, ou no mínimo curiosas, após certo tempo. É o caso de uma que vi em "Impacto profundo", que em janeiro a televisão reprisou pela enésima vez. Quando um Elijah Wood ainda adolescente propõe casamento a sua namorada, interpretada por Leelee Sobieski, a câmera enquadra a mão de Elijah se abrindo para mostrar dois anéis. Tomada praticamente idêntica à que Peter Jackson filmaria três anos depois, em "O senhor dos anéis" - só que, claro, com um anel apenas. Premonição de um, cópia de outro ou coincidência?

31.1.06

Os anjos

Ó doces anjos das palavras,
Em vosso seio acalentai
Um'alma grata e a descoberta
De um universo intocado.

Quando calei encantamento
Deliciei-me a ouvir a voz
Onde deixei a cor do verso
Sentidos novos percebi.

Ó anjos, tendes tal presença
Que encontrais em cada estrofe
A refletir-se vossa imagem
Reensinando a ver a vida:

Fazer da chuva algodão-doce
De uma saudade um barco à vela
Do gosto acre a limonada
Da folha ao vento a borboleta.

30.1.06

Seis, sete, oito

Uma luz não se apaga:
Eis que digo o indizível
E o silêncio persiste.
Vê? O tempo é o mesmo.

O calor que me entorpece
Não aquece o lado esquerdo.
Só uma tênue coberta
De falsos risos e abraços.

Cansado, procuro sossego
No instante do dia que chega
Entretanto, acordo assustado:
O sonho é desfeito aqui mesmo.

27.1.06

Meu refúgio

Em meu calmo refúgio
Escapo ao burburinho
Encontro meus amigos
E nos rimos entre histórias e piadas.

Em meu doce refúgio
Escrevo, leio, canto
Recebo a namorada
Fascinado pelos sonhos que traçamos.

Em meu belo refúgio
Eu vejo da janela
Um lindo campo verde
O azul do céu e ao lado escrito "Windows".

23.1.06

O Mar da Tranqüilidade

Mar de águas serenas, tranqüilas, te vejo espelhado
Na criança pequena que dorme e nem lembra os sonhos que teve
Na adolescente que volta pensando no amor encontrado
Nos velhos amigos e na confiança que o tempo não leva
No homem matuto contente com pouco que teve de Deus
No idoso em família que diz: vale a vida vivida entre os seus.

Mar de águas claras e calmas,
Por que deixamos turvar o teu límpido rosto?
Satélite do homem,
Tão próximo ao toque!
Nosso espírito inquieto
Pousou em tua face
Ferindo a beleza tua
E em vã tormenta escondendo
A tranqüilidade da Lua.

19.1.06

Amar as palavras

Janeiro passa da metade quando me dou conta: no dia 9, completaram-se seis meses que estou aqui, escrevendo. Nesse tempo, mais de quarenta vezes tive motivos para clicar o botão “publicar postagem” do site. E pensar que demorei dois meses apenas para criar coragem e despir o rei. Difícil é dar a primeira pedalada, não andar de bicicleta. Sem saber onde poderia parar, às vezes parava frente a um verso ou uma frase, e: modéstia à parte, gostei disto.

Volta e meia perambulam entre minhas palavras amigos que me ajudaram a estar aqui. Muito usei de lugares-comuns, certas concessões precisei pedir ao leitor e a outros autores. Afinal, escrever segue sendo um duelo entre o novo e o que já foi dito. Posso dizer o mesmo de outra forma sem copiar? E se o justo sentimento já expresso por outrem se repetir, ele não será novo – para mim, pelo menos? "Mas quais são as palavras que nunca são ditas?"

O ainda desconhecido protótipo de cronista e poeta terá de lutar muito se quiser um editor. Por enquanto, neste microuniverso, além de geralmente ignorado, ele já foi elogiado, contestado anonimamente, de certa forma censurado, serviu de inspiração... e, mais importante, um punhado de vezes teve confirmadas as palavras da amiga que o incentivaram a buscar na poesia uma forma de expressão (alô, Karen!).


Continuar aqui é, a cada dia, uma esperança de encontrar nas palavras uma fonte de liberdade, de autoconhecimento, da emoção que corre nas veias, mas que normalmente não se deixa sangrar por puro medo. Amar as palavras é amar sua origem, seu chão, o que eu modestamente tenho tentado. Acordar sozinho para as “grandes verdades” já é um exercício difícil, Katinha; quando se consegue pôr isso em palavras e ajudar alguém, já se chegou a algum lugar. Portanto, let it bleed.

18.1.06

POA 40 Graus

Piazada da vila tomando banho em lago de parque, calçada de edifício e carro de inconseqüente – esses são os que se dão melhor. Porque, de resto, os verões porto-alegrenses (e gaúchos, no geral) têm cozinhado o cidadão e abalado a fama de clima frio que o Rio Grande do Sul tem. Não lembro, na infância ou na adolescência, de que alguém falasse em sensação térmica de 43 graus. Isso era coisa para o Rio de Janeiro. Refúgios? Ar condicionado e vários banhos gelados (gelados?) por dia – para quem pode ter esses privilégios.

São Pedro pareceu esquecer, na primeira metade de janeiro, o estado que o escolheu como padroeiro. Mas dizem que a culpa não é do santo, e sim do buraco na camada de ozônio. De qualquer forma, basta ver, em qualquer época do ano, nos mapas climáticos da televisão, as cores, cada uma representando uma condição do tempo. A divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina é, freqüentemente, também limite entre duas cores diferentes. Se faz sol cá, chove lá, e vice-versa. Existe qualquer coisa de errado com o rio Uruguai. Merece uma investigação, quem sabe uma CPI, faz bem a Brasília em ano de eleição.

Enquanto isso, excesso de energia e falta d’água. Tomara que este ano não seja como 2005, com seca até março. Eu lembro a alegria que foi quando caiu a primeira chuva de verdade após três meses. Plantações e gado literalmente pedindo água, solo rachado como nos desertos de filme, água saindo da torneira com cheiro de terra – tudo isso já estava acontecendo de novo.

Bem, depois de dez dias cozinhando em fogo alto, o porto-alegrense mereceu um fogo brando e até alguma chuva. Tanto que quase desisti de falar sobre o assunto, ainda mais que Juremir Machado da Silva teve a mesma idéia e escreveu antes. Mas a referência ao filme de Nelson Pereira dos Santos e à música de Fernanda Abreu estava em todas as bocas, caindo de madura.

17.1.06

Nosso encontro

Certo dia vi ao longe pequena borboleta
Branca, marrom,
Manchas verdes feito olhos;
Encantaram-me a graça e a beleza.
De repente achegou-se, num vôo alegre;
Estiquei o braço e ela pousou em minha mão.

Então, flutuando carinhosa,
Esvoaçou à volta, beijou-me o rosto
Afastou-se, virou-se, foi descansar
Pousada num ramo de árvore.
No dia seguinte ela foi embora
Será que a verei de novo?
Triste eu me perguntava
Enquanto alegre pensava
Nesse nosso encontro.

16.1.06

Rescaldo

Afinal, o que resta?

Queimaste minh’alma, e pouco ficou.
Surpresas, enlevos, promessas,
Engodos, ausências, mentiras
Tuas curvas, teu cheiro, tuas mãos.
Estou me sentindo vivo.
Mas nunca aprendi a dizer
Deste a vida e mais tarde
Ensinaste alguém a chorar.
O tamanho do meu amor
Brasas ardendo ainda
Fotos que nunca existiram
Bichinho feito em pelúcia
Caixa cheia de cartas
E outra caixa de cinzas.

Aqui, dentro do peito.

9.1.06

Quimera

O brilho nos teus olhos era
A lágrima escondida era
Saudade antes do tempo era
O amor imaginado apenas era.
Ah, quem dera.

7.1.06

Versão brasileira

John Nash apareceu na televisão há alguns dias e fez confirmar um fato que, muitas vezes justifica uma comunidade no Orkut chamada “Eu odeio filme dublado!”. Para quem não lembra, John Nash é aquele professor de matemática interpretado por Russell Crowe em “Uma mente brilhante”. O curioso é que, até então, eu tinha motivos mais fortes que a dublagem para preferir o cinema à TV, como a proporção da tela, a qualidade de imagem, os comerciais, o escurinho do cinema, os dropes de anis, etc., etc.

Trocadilhos à parte, qual o papel de Russell Crowe nesta história? É que foi tão marcante sua atuação como John Nash que, se ele merecia o Oscar de Melhor Ator, era por “Uma mente brilhante”, e não por “Gladiador”, que ele recebeu no ano anterior.

Tão marcante que, na televisão, parecia haver desaparecido o Russell Crowe que eu vira no cinema. Os trejeitos, o olhar perdido, o comportamento estranho estavam lá. Mas por que John Nash não conseguia mais mostrar aquele ar de “pessoa estranha” que Crowe conseguiu criar? Lógico: porque a voz convencional da dublagem eliminou a interpretação “vocal” do ator neozelandês. Os dubladores são atores também, mas convenhamos: não era mais Russell Crowe no papel de John Nash, mas outro ator, brasileiro, fazendo uma interpretação própria das falas do personagem e “usando” o corpo de Russell Crowe.

Como será, então, quando a Globo ou o SBT, em outro fim de ano, apresentar “Ray”? O ator que dublará Jamie Foxx terá condições de estudar o personagem para imitar a voz e os trejeitos e ainda “traduzir para o português” o jeito de falar de Ray Charles? Os atores que fazem dublagem terão o mesmo tempo para desenvolver os personagens a serem dublados que têm os atores de uma nova produção? Não posso responder, mas, com a quantidade de filmes novos que vão para as locadoras semanalmente – além dos enlatados diretamente para a televisão –, acredito que não.

Há exceções memoráveis, como o Dr. Smith da série “Perdidos no espaço”, dos anos 60. Borges de Barros, o ator que dubla o Dr. Smith, chegou a ser elogiado pelo próprio Jonathan Harris, o dono do papel, pela forma com que conseguiu reproduzir em português a afetação, os sustos e a malícia do “vilão” da nave Júpiter 2. Mas isso foi há quase quarenta anos.


Quantas vozes inapropriadas ou mesmo desagradáveis encontramos hoje nos filmes dublados? Sem querer entrar em questões trabalhistas, é possível, pela forma com que algumas dessas vozes se repetem, que ou os dubladores se submetam a uma carga que impede um estudo maior dos personagens ou não estejam à altura dos desempenhos dos filmes originais. Massificação e padronização da cultura cinematográfica, massificação e padronização também de todas as etapas de sua produção... Mas que ingratidão. Nós, mentes brilhantes, deveríamos agradecer às redes de televisão por nos proporcionarem tão belo espetáculo, e ainda gratuito.

1.1.06

Encontro

Olhei para minha janela ontem à noitinha. A chuva e os trovões cessaram para que se pudessem ouvir os foguetes. O céu olhava a cidade com olhos cinza-escuro, preparando-se para fechá-los, e o bucólico do momento fez com que me imaginasse ali mesmo ao primeiro amanhecer de 2006. Era algo como ir à meia-noite à estréia de algum filme muito esperado para poder dizer “estive lá”.

Entretanto, faltei ao encontro e contentei-me em ver, mais tarde, aquela estranha desolação de todo dia primeiro de janeiro. Um pequeno lembrete de Ano Novo, pensei, de que certas decisões merecem mais determinação – e de que outras, nem tanto. Eu não sabia o que escrever primeiro em 2006, até lembrar esse encontro adiado para outro dia do novo ano.