27.12.05

Frente e inverso

Poesia? Exceto algumas incursões na adolescência, nunca achei que tivesse jeito para a coisa. Eu estaria menos para poeta que para um mero e ingênuo catador de palavras. Inda mais estudando Jornalismo, o reino do texto corrido.

Nunca use a primeira pessoa,
Proibida a opinião.
Enxugue esse texto, não escreva à toa,
Usar adjetivo? A resposta é não.

Até que um dia me sopraram no ouvido que eu deveria investir no campo da poesia. Tomei coragem, virei blogueiro e tenho alternado prosa e verso. Só que aquela antiga comichão das frases longas, sem métrica ou rima por vezes me ataca. Que poesia o quê!

É só em prosa que eu me encaixo.
Mas, sempre que isso acontece,
Meu senso não me obedece

E pulo pra linha de baixo.

26.12.05

Cinco filmes por ano

Desde há algum tempo tenho me detido neste ou noutro filme como “o meu favorito deste ano”. Para tentar ser o menos injusto possível (o que é muito difícil, convenhamos), resolvi listar, então, qual John Cusack, em “Alta fidelidade”, os cinco filmes que mais me marcaram em cada ano, sem ordem obrigatória; apenas o primeiro é o mais marcante deles. Esta relação se iniciava em 2001, quando passei a ver o cinema com outros olhos (história esta que conto aqui), mas resolvi adicionar 2000 pois foi quando comecei a anotar cada filme a que assistia. Apenas não estranhem "Matrix" em 2001. Crime imperdoável, não o vi no cinema.

2000
Quero ser John Malkovich
Tenha fé
Beleza americana
A lenda do pianista do mar
Dogma

2001
Moulin Rouge!
Amnésia
Inteligência artificial
Matrix
Quase famosos

2002
O senhor dos anéis: a sociedade do anel
Clube da luta
O fabuloso destino de Amélie Poulain
Cidade de Deus
O poder vai dançar

2003
As horas
Capitães de Abril
Kamchatka
A viagem de Chihiro
O senhor dos anéis: o retorno do rei

2004
Brilho eterno de uma mente sem lembranças
21 gramas
Antes do amanhecer
Encontros e desencontros
Diários de motocicleta

2005
Hotel Ruanda
Ray
A queda!
Hora de voltar
Quanto vale ou é por quilo?

24.12.05

Presente

À beira do início da vida
À margem da vista das gentes
Um’alma se encolhe incontente
À espera que o tempo decida.

E quase que em sua tristeza
Apaga sua própria memória
Não fosse contar a história
Dos dias em que se viu presa.

Palavra de um anjo caído
Traduz-se em vida liberta
E além da amizade desperta
Um homem se vê renascido.

23.12.05

Flagrante

Dia desses, em um ônibus, vejo dois senhores conversando animadamente sobre TV e cinema. Aí um deles, falando com a segurança de quem entende do riscado, diz:
– Sabe, o Joel Schumacher, que foi o produtor do "Senhor dos anéis", produziu também o "King Kong"...
Tive que me controlar para não rir. Gafe à parte, pensei: não adianta, uma vez colônia, sempre colônia. Ainda é mais fácil lembrar o norte-americano que destruiu Batman do que o neozelandês que construiu a Terra Média.

22.12.05

A espiral

Isto me faz lembrar uma crônica do Verissimo. A idéia é parecida... mas vá lá. Toda gente entra numa espiral dessas vez que outra. Mesmo que não eu esteja usando nenhum remédio que não sei onde meti. Bem, talvez seja por isso mesmo.

E começo justo por ela, a crônica cujo nome não lembro. A necessidade de não esquecer nada. De fazer caber no cérebro a Encyclopaedia Britannica. Afinal, quem mais lembra mais será lembrado. I forgot to remember, ou algo assim. Acho que é um nome de música... ou será de um disco? Minha memória não dá certeza. Exceto a de que tenho apenas uma vaga idéia.

Também, a quantidade de coisas que nos obrigamos a lembrar! E, para piorar, ainda uso agenda. Sem ela, talvez tivesse mais tempo, pois certamente esqueceria uma porção de obrigações todos os dias.

Como... fazer as compras. Pagar as contas. A do condomínio não, pois esqueci o vencimento e, agora, a multa é a mesma em qualquer dia. Um nome para o meu filho. Este filme não posso perder!!!! Quinze telefonemas, trinta e-mails e ainda se livrar do lixo eletrônico. Época de Natal? Presentes, cartões, mais e-mails. Aproveitar ao máximo o recesso e ainda não ficar alardeando porque pega mal. Cuidar-se. Parecer sereno, para que não apareçam rugas, como os monges de “O nome da rosa”. Aparar as unhas e a barba, pois não quero que me peguem para Zé do Caixão ou Raul Seixas. Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu? Frankly, my dear, I don’t give a damn.

E assim voa a humanidade, porque, se caminhasse, não chegaríamos sempre atrasados. Passar no concurso. Ser bamba em informática, culinária, enologia, história medieval, renascença italiana, expressionismo alemão, economia popular e ainda dominar quatro línguas. A Caverna de Platão e o materialismo de Hegel. Crônica, conto e poesia. Escrever e ler, ler, ler. Todos os jornais, todos os noticiários da TV e todos os do rádio, senão eu não sou jornalista, pregavam os professores da faculdade. Não seria melhor na época de Groo, o Errante? O menestrel, por mais chato que fosse, servia de jornalista, músico e poeta num só pacote. Venda casada séculos antes do capitalismo selvagem. Nada de celulares que funcionam geralmente nas ligações de engano e para avisar que seus créditos estão acabando. Recarregue seu aparelho. O Orkut servidor agiu de forma inesperada. Este programa cometeu uma operação ilegal e será fechado.

Chega! Quisera que essa espiral não fosse como aquela sem fim de “Um corpo que cai”, e sim uma simples mola de relógio que, de tanto apertar, quebra e volta à posição normal, relaxando-se. Com uma só cajadada, dois coelhos: nada de espiral e nada de relógio. Se, depois de tudo, for um lugar como aquela praia plácida onde Jodie Foster caiu e encontrou seu pai, não será de todo mau. Aí, quem sabe, poderei pensar serenamente nas pessoas que amo e até, numa crônica, citar o nome daquela que o Verissimo escreveu. Por enquanto, só consigo lembrar os Zugspitzartisten.


Mas por que diabos estou lembrando os Zugspitzartisten?

21.12.05

Caderno de notas

Há uma presença
Na ponta da língua
E uma lacuna
Tomando o espaço.
A linha fluindo
Estanca e se torna
Arame farpado
Ferindo as palavras.
Pousados descrença,
Ciúme, egoísmo,
Ocultam as cores
E vejo meu sangue.

Quem dera assim fosse,
Sacudo o tempo
E digo aos agouros:
É outra a conversa.
Agarrem-se firme
Que a folha amassada
Não vê o descaso
E a desnecessidade.
E o meu pensamento
Qual água corrente
Carrega embora

A dor e o silêncio.

14.12.05

O mecanismo da amizade

(ou: Uma conversa no Messenger)

Mona Lisa diz:
Oi, Carpe Diem! (carinha sorridente) Há quanto tempo eu não teclava com vc!
Carpe Diem diz:
Oi, Mona.
Mona Lisa diz:
Ué, tem algo de errado? Como está o amigo?
Carpe Diem diz:
Tô mais ou menos...
Mona Lisa diz:
O que houve?
Carpe Diem diz:
Ando por aí, sem nada pra fazer...
Mona Lisa diz:
E aquela turminha das saídas, das baladas...
Carpe Diem diz:
Vc nem sabe. Foi um pra cada lado. Lembra a Fernanda, que tinha ido pra Europa estudar?
Mona Lisa diz:
Claro!
Carpe Diem diz:
Me disseram que tá trabalhando lá... e tanto que nem tem tempo pra ver os amigos na Internet.
Mona Lisa diz:
Normal... mas e os outros?
Carpe Diem diz:
O Bruno se converteu praquela religião do programa de TV e agora não vê mais os amigos.
Mona Lisa diz:
Por quê?
Carpe Diem diz:
Sei lá, parece que mudou os hábitos... e aí foi aparecendo cada vez menos.
Mona Lisa diz:
Que pena.
Carpe Diem diz:
Tinha a Bete, ainda... aquela do curso de espanhol.
Mona Lisa diz:
Lembro.
Carpe Diem diz:
Não sei, ela parece fogo de palha. Se entusiasma no início com as pessoas, mas depois vai se afastando.
Mona Lisa diz:
Por umas histórias que vc me contou, eu já desconfiava...
Carpe Diem diz:
É... e vc? Abriu aquela empresa?
Mona Lisa diz:
Abri, sim, mas o meu sócio, o Márcio, saiu e me deixou com uma porção de dívidas, olha só!
Carpe Diem diz:
(carinha assustada) Tá brincando! Mas ele não era um velho amigo?
Mona Lisa diz:
Vc disse bem, era...
Carpe Diem diz:
Ninguém merece! E vc não vai fazer nada?
Mona Lisa diz:
Ainda não decidi. Mas pode ser que eu entre na Justiça, aquele desgraçado.
Carpe Diem diz:
Também, com o que ele aprontou! E agora, o que vc anda fazendo?
Mona Lisa diz:
Depois que terminei com o Leonardo, quase só trabalho e estudo... aliás, nem sei por que ainda não mudei o meu nick...
Mona Lisa diz:
(carinha pensativa)
Mona Lisa diz:
Ué, sumiu? (carinha chorando)
Mona Lisa diz:
Ei, Carpe Diem, kd vc?
Carpe Diem diz:
Desculpa, eu estava pensando...
Mona Lisa diz:
Em quê?
Carpe Diem diz:
Como é complicada essa história de amizade. Vc um dia está cercado, no outro está sozinho. Que acha se eu escrevesse alguma coisa sobre isso?
Mona Lisa diz:
Legal. Pq vc não escreve?
Carpe Diem diz:
Sei lá. Tenho de medo de ficar parecendo aquelas mensagens bobas que se recebe na net. Ia ficar brega.
Mona Lisa diz:
Aquelas, de florzinhas e ursinhos se abraçando?
Carpe Diem diz:
Essas mesmas. Hahahaha
Mona Lisa diz:
Hehehehe (carinha sorrindo)
Carpe Diem diz:
Eta assunto batido! Como escrever sem parecer brega?
Mona Lisa diz:
É, mas amizade aparece em tudo, na TV, no cinema, nas músicas... O Milton Nascimento vive cantando sobre amizade e não é brega.
Carpe Diem diz:
É mesmo. Como será que ele consegue?
Mona Lisa diz:
Não sei. Deve ser um segredo que ele guarda debaixo de sete chaves. Hehehe
Carpe Diem diz:
Hahahaha Essa foi boa!
Mona Lisa diz:
E que título vc vai botar no texto?
Carpe Diem diz:
Hmmmm... pensei em “O mecanismo da amizade”.
Mona Lisa diz:
Uau! Gostei, garoto.
Carpe Diem diz:
Não é coisa minha... é um verso de uma música da Legião.
Mona Lisa diz:
Mas é bonito. Quando vc terminar, quero que mande pra eu ler.
Carpe Diem diz:
Mesmo?
Mona Lisa diz:
Mesmíssimo! Faço questão.
Carpe Diem diz:
Puxa... tá bom. Se sair alguma coisa...
Mona Lisa diz:
Aposto que vc consegue. (carinha piscando)
Carpe Diem diz:
Brigaduuuu! Já estou até mais animado! Vc é uma amigona, sabia?
Mona Lisa diz:
Claro! A gente tc há décadas! Hehehe Vc é um amigão tb!
Carpe Diem diz:
Brigado de novo! Já reparou numa coisa? Alguns amigos a gente perde, outros a gente redescobre.
Mona Lisa diz:
É o mecanismo da amizade, né?
Carpe Diem diz:
Se é... Puxa, tá ficando tarde. Tenho que ir, senão durmo aqui mesmo.
Mona Lisa diz:
É mesmo. Se o tempo correu, é porque a conversa foi boa, não acha?
Carpe Diem diz:
Acho. Um beijão pra vc... ah! E eu há tempos estou pra te fazer uma pergunta... (carinha tímida)
Mona Lisa diz:
Pode fazer.
Carpe Diem diz:
Como é seu nome?

10.12.05

Bom e velho Macca


Gostei muito do mais recente disco de Paul McCartney. Basta penetrar no aparente “caos” de cortinas nas janelas e roupas no varal que se encontra ali, violão em punho, o mesmo talento criador que, à época em que foi tirada a foto p&b da capa, estava se iniciando em um grupo chamado The Beatles.

Com tantos altos e baixos em sua carreira solo, provavelmente McCartney tenha obtido em “Chaos and creation in the backyard” seu maior triunfo desde “Tug of war”, de 1982. Comparando “Chaos...” com os dois trabalhos anteriores, Paul fez um disco mais soturno e musicalmente elaborado que “Flaming pie”, de 1997, e não tão ruidoso e experimental quanto “Driving rain”, de 2001. Nas treze faixas, Macca obteve uma surpreendente unidade, caprichando tanto nas melodias quanto nos arranjos, baseados principalmente em violão, piano, percussão e cordas.

“Chaos and creation” parece consagrar uma fase amargurada e “cinzenta” na carreira de Paul, iniciada com “Driving rain”, mas com muito mais sobriedade, intimismo e ponderação. Há espaço para Paul contar mais uma de suas “historinhas”, como em “Jenny Wren”, uma faixa que, pela sonoridade e simplicidade, poderia ter saído do “Álbum branco” dos Beatles – e também para uma agradável balada sobre confiança, amor e amizade, em “Follow me”. Mas McCartney deixa transparecer o amargor em canções cínicas como “Riding to Vanity Fair”, sobre falsidade, e a aparentemente alegre “Friends to go”, sobre situações indesejáveis.

Estaria o ex-beatle voltando às origens? Só se a fotografia da capa, tirada em 1962, servir de metáfora para um retorno à genialidade do compositor àquela época. Porque, mesmo permanecendo fiel ao seu estilo, Paul McCartney consegue ainda, encaminhando-se já aos 64 anos, como ele cantava naquela longínqua faixa de “Sgt. Peppers”, mostrar maturidade e inovar em suas criações. Bom e velho Macca... Velho?

5.12.05

Crer ou não crer

Quase por acaso, caiu em minhas mãos uma compilação de cartas e outros textos escritos pela pintora mexicana Frida Kahlo. Lendo um deles, detive-me em uma frase representando uma opinião do marido de Frida, o também pintor Diego Rivera: “Quando a dúvida termina, começa a estupidez”. Quase caí na tentação de perguntar se não seria estúpido quem tem certeza absoluta da verdade da frase, mas essa armadilha não funcionou após uma segunda análise.

O problema, na realidade, é acreditarmos piamente em tudo que nos é dito e ficarmos acomodados, como se não nos dissesse respeito ou não houvesse alternativa de pensamento ou atitude. É um vício cultural que não é exclusividade terceiro-mundista, mas é nossa parte do mundo que mais sofre com ela. E tudo começa na escola. Se inclusive as “verdades” da física são relativas, válidas apenas para ambientes “ideais” – e, por isso mesmo, inexistentes –, o que dizer daquele ensino fragmentado e insípido de literatura, história e geografia que os governos militares tão gentilmente nos deram?

Já na universidade, uma das máximas determinava que o jornalista precisa “desconfiar de tudo”. Muito bem, as coisas começam a melhorar. Mas quem permite que desconfiemos das notícias chapa-branca que até o atual governo, dito dos trabalhadores, manda publicar? Nós, jornalistas, estúpidos ou não, contribuímos para a disseminação e perpetuação da estupidez, pois reforçamos que o que fulano ou beltrano disseram era verdade. Assim manda o bolso no final do mês.

E a submissão total às “verdades” campeia nas mais diversas áreas – moda, comércio, publicidade, política, religião, literatura, artes (que o dissessem Frida e Diego, se vivos fossem!)... Pensando bem: todas as grandes descobertas e invenções surgiram de alguma dúvida, alguma inconformidade. Se o ser humano levasse menos tempo para questionar a realidade, provavelmente já teríamos computadores séculos atrás.

Essa é uma postura dialética, ou seja, os fatos, a realidade, estão aí para serem contestados, discutidos. Por isso é que Marx foi genial: mesmo que ele tenha ficado à margem, graças às grandes “verdades” da Guerra Fria e do fim da União Soviética, e que os proletários de todos os países não tenham se unido, a luta de classes – da qual a luta de idéias é uma manifestação – sempre existirá. Quem contestar a verdade da frase que abriu esta crônica nada mais fará que estabelecer também uma dialética e, com ela, uma luta de idéias, o que é sempre positivo.

Por sinal, não seja estúpido: não acredite piamente em tudo o que escrevi.

3.12.05

Minas, julho 92

I
O sol me acordou serpeando a estrada
E subindo a serra ele viu os meus olhos
Na serra de verde, de seiva e de orvalho
O sol nunca visto é um velho amigo.

II
Serra de encantos,
de amigos, de cores,
de anjos, de igrejas,
de suaves amores;
de tempos, lugares,
histórias, esquinas,
de cheiros, de lares,
de prantos, de cantos,
de minas.

III
Cabelos de terra, os olhos da mata
E beijos com gosto de amor revivido.
Apenas a noite, medida exata
Pro dia não ser nunca mais esquecido.

IV
Um dia eu espero
Te ver bem defronte
Talvez não tão belo,
Mas muito horizonte.

30.11.05

Cinco da manhã

Puxo a cortina, abro o vidro e deixo entrar a visão da brisa fresca da ainda madrugada. Mas, conforme a época, o espetáculo se torna mais belo, pois no início do verão, às cinco da manhã, graças ao famoso paralelo 30 cantado por Kleiton e Kledir, o dia já está quase nascendo em Porto Alegre.

É verão? Combinado, então. Talvez a magia do momento seja mais intensa, pois a cidade se comporta como se fora noite, apesar de já ser dia.

Quisera ter nessa hora um amplo terraço para ver essa mesma paisagem do alto ou, melhor ainda, uma varanda sobre uma coxilha. Entretanto, deixo os delírios de poder econômico ou de vida no campo e contento-me com o quadro que a janela da sala emoldura. Para um ser urbano, já é um alívio ver a cidade quieta e praticamente silenciosa.

Estou a apenas trezentos metros de uma das principais avenidas, ligando o aeroporto ao centro, e que, àquela hora, ainda não tinha se lembrado de acordar. E a multidão de caixas cinzentas de concreto não oferece risco (ainda) a uma pequena floresta em um terreno abandonado lindeiro, que vejo à minha frente.

Algum dia, esse verde há de se render, mas, enquanto isso, agradeço pelos pássaros, borboletas e pitangas quase à beira da janela. Um oásis e seu cheiro esverdeado que quase me fazem esquecer onde estou, pois a trilha sonora inclui sabiás, uma carroça passando na rua e o rumor longínquo de um que outro automóvel.

Pena que o momento não perdure. Trinta minutos de espetáculo e o ruído de veículos ao fundo já é mais intenso e constante, e o primeiro ônibus do dia passa em frente, quebrando o silêncio.

Entretanto, esses minutos de ar fresco, sem fumaça e pássaros cantando me vacinam para o resto do dia, pois vejo do que uma cidade com um milhão e meio de habitantes é capaz. Fala-se tanto dessas metrópoles que nunca param... não vejo orgulho nenhum nisso. Porto Alegre, felizmente, ainda tem galos cantando em uma extensa zona rural, aos poucos sendo levada pelos condomínios horizontais dos sonhos dos privilegiados. Minha cidade ainda pára, nem que seja por algumas horas. E poder presenciar isso faz valer a noite insone.

27.11.05

Soneto do tempo

Lá vai o tempo, este vento ligeiro...
Que afasta as estrelas e traz tempestade,
Que leva a presença e deixa a saudade
E faz o amor parecer estrangeiro.

Nem bem deixou se sentir por inteiro
O tempo é presente, perpassa e invade,
Erguendo barreiras, destruindo cidades,
Ventando implacável, veloz, altaneiro.

Quem dera o tempo deixasse um aviso
E desse a saber se o próximo vento
Carrega consigo o choro ou o riso.

Mas sinto na pele da brisa um alento:
Morrer o tempo a cada instante é preciso

Pois traz como herdeiro um novo momento.

20.11.05

Eisenstein e o neófito

Quem diria que um atraso de meia hora pudesse ser tão proveitoso? Interrompidas as atividades da oficina de cinema porque um colega não pôde chegar antes, as pessoas se puseram a conversar. E minha curiosidade de neófito me fez puxar papo com alguém que já parecia ter concepções bem sólidas a respeito de cinema.

Se minhas idéias esbarravam em um vocabulário ainda limitado, meu colega conseguia, com exatidão e simplicidade, explicar alguns conceitos que me intrigavam. Simplicidade essa que começava com a máxima de Gláuber Rocha: "Uma câmera na mão, uma idéia na cabeça". Que digam que o Cinema Novo não merece mais esse adjetivo, mas o fato é que não precisamos, por enquanto, de tecnologia de ponta para fazer cinema. Um desenho animado rudimentar, um VHS caseiro, nada de grandes equipamentos ou efeitos especiais - mas ainda é possível, por essa prática, aprender a fazer cinema.

Eu já intuía que, assim como no texto jornalístico, inexiste a objetividade no cinema. Mesmo preso a um roteiro, o diretor põe sua marca pessoal (mesmo se for a do estúdio) em cada decisão tomada no set, em cada duração de tomada. E isso pude ver de perto na hora da montagem do vídeo da oficina - ou edição, se falarmos do processo digital.

Foi então que meu colega me falou sobre Sergei Eisenstein, aquele diretor soviético da primeira metade do século XX de quem tudo que eu lembrava era uma sessão de O Encouraçado Potemkin e uma antiga foto, de olhar compenetrado e quase rude, analisando uma película.

A montagem, para Eisenstein, era a etapa mais importante do processo cinematográfico. Mais, inclusive, que o roteiro, as atuações ou a própria filmagem. O plano era a unidade básica do cinema, e era na montagem que o diretor escolhia exatamente o que seria exibido, por quanto tempo, com que enquadramentos... E, no caso do cinemão norte-americano, pré-fabricado, o diretor muitas vezes nem interfere na montagem, que fica a cargo de um montador encomendado pelos grandes estúdios (que cinema autoral, o quê! O povo quer circo, que se lhe dê circo!).

A conversa de meia hora migrou de enquadramentos para montagem, e daí para a força dos grandes sindicatos norte-americanos, que encarece o filme, e depois para a semiótica, assunto árido com o qual nunca convivi pacificamente. Cada elemento de um filme é um signo, lembra o meu colega, e, se em um filme épico como Gladiador ou Ben-Hur alguém, por descuido, aparecer em cena com um relógio de pulso, este não será apenas um relógio: será um signo, que carrega um significado por representar uma época que não é a que o filme quer mostrar. Com essa ilusão frustrada (pois criar ilusões é uma das funções do cinema), o filme pode cair no ridículo.

Voltei para casa com o pensamento em ebulição por causa de tantos temas fascinantes, e com a certeza da necessidade de me embrenhar mais nesse universo - desta vez, nem a semiótica que sempre desprezei escapa. Avisei Ivanhoé por mensageiro, uma vez que telefone e e-mail não condizem com uma história ambientada no século XII: "Senhor Cavaleiro, voltareis para a estante temporariamente". No lugar dele, veio comigo As principais teorias do cinema, de Dudley Andrew, para que eu desse boas-vindas a vários pensadores da chamada sétima arte.

Logo de início, descobri que Eisenstein, apesar de sua capacidade assombrosa como diretor e como teórico, também pecou justamente por jogar ilogicamente suas idéias, tamanha a abrangência do seu pensamento. E que algumas das idéias do diretor restam superadas, pois excluíam a opinião do espectador. Entretanto, isso em nada desmerece as descobertas de uma simples noite. Tomei uma decisão que transformou meia hora de atraso em um grande avanço em termos de conhecimento.

10.11.05

Lado só

Na aléia deserta
Os únicos passos
São das folhas ao vento.
Nas ruas vazias
Milhares de almas
Dissimulam sem rumo.
No turvo dos olhos
Desenho um espaço
Infinito e oculto.

E mesmo uma tarde brilhante
Encinza qual árvore seca
Se é ausente a presença.
Quem sabe o dia algum dia
Desperte e faça bastante
Saber ao meu lado... e só.

22.10.05

Referendum Inutilis

Passei a campanha inteira do famoso referendo de 23 de outubro debatendo(-me) entre propagandas e argumentos a favor do sim e do não para, às vésperas, encontrar alguma sintonia ao falar com uma amiga que prefere o voto nulo. Não que minha amiga tenha mudado meu voto, mas conseguiu pôr em palavras mais ou menos o que eu já pensava: estamos sendo estúpidos se acharmos que este referendo vai mudar alguma coisa.

Por que o sem-fim de argumentos? Por que tudo que se diz parece válido? Porque é uma questão ampla, séria, pessoal e controversa demais para ser decidida coletivamente com um simples apertar de botão. A urgência que nossas pseudolideranças políticas deram à questão da proibição da comercialização de armas é tão artificial que só pode atender a algum interesse político ou econômico. Faz lembrar a conveniência do desmonte do ensino público para a proliferação das universidades (bem) pagas.

Da mesma forma, a exacerbação do crime nas ruas é conveniente para a realização deste referendo. Qualquer que seja o resultado, arriscamo-nos a depois ouvir que a situação da falta de segurança no país não seria esta se o povo tivesse votado diferentemente em 23 de outubro. Melhor seria se fôssemos consultados, por exemplo, se um presidente merece continuar em Brasília, se os congressistas têm direito de renunciar para escapar de um processo por falta de decoro – ou até sobre algo bem mais prosaico, como a mudança da entrada nos ônibus, que foi enfiada goela abaixo dos porto-alegrenses sem que a Prefeitura ouvisse as reclamações da comunidade.

Mas voltando ao referendo: a campanha do sim aposta na incompetência do brasileiro para manejar ou guardar uma arma; a campanha do não aposta na incompetência dos governos para garantir a segurança pública. Ora, os noticiários dão mostras diárias de ambas as incompetências. E nem uma coisa nem outra vai melhorar, independentemente do resultado. Frieza, destreza e responsabilidade no uso de uma arma dependem de educação, de postura cultural. Garantir a segurança do cidadão depende de vontade política. Alguma chance de isso acontecer em frente a uma urna eletrônica? Não acredito.

Firmado na idéia básica do direito, da liberdade individual, tomei desde o início posição ao lado do não. Mas agora vou um pouco além: deveríamos dizer não ao referendo – e, como as chances de uma massiva anulação do voto não existem no Brasil, continuo votando não por ser a escolha mais próxima dessa idéia. Os efeitos, pelo menos, seriam iguais aos de uma não-realização do referendo.

A cultura do nosso povo, infelizmente, ainda não permite que decidamos razoavelmente sobre uma questão como a comercialização de armas. Absorvemos com muita facilidade e sem discussão qualquer "fenômeno" criado pela mídia, e os exemplos estão aí: Tancredo Neves, Collor de Mello, Lula... Assistimos a campanhas apostando na estupidez de uns e de outros e não vemos a estupidez geral criada e gerida pelo sistema – sendo um de seus filhotes mais novos a pretensa utilidade do referendo de 23 de outubro.

19.10.05

Lacuna

As agulhas da memória
Dilaceram este peito
Consumindo argumentos
Numa névoa dissipados;
E o doce olor de um dia
Hoje é sombra do que fora
Quando estrelas ao acaso
Da vereda eram lume.

Uma faixa movediça
(Este insólido terreno)
Quase abarca os pés da alma
Que em vão tenta alçar vôo
Sobre infindo oceano –
E este aparta, insensível,
A charneca e a terra firme,
A palavra e a resposta.

9.10.05

O silêncio e eu

Tarde de final de outono, e procurei um refúgio entre as árvores do parque, afastado da agitação que deixa barulho em troca dos pensamentos roubados. Pouco a pouco, os ruídos na rua foram dando lugar a meus passos no caminho de areia. Foi ali, onde os motores haviam se tornado um burburinho longínquo, que eu o encontrei.
– Então ela não quis lhe dar ouvidos de novo, não foi? – disse uma voz.
– Já vem você de novo? – respondi, não conseguindo disfarçar alguma irritação. – Por que sempre aparece nessas horas?
– E você achou que fosse encontrar quem por aqui, neste mato? O Coelho Branco? Agora é tarde, é muito tarde! – disse, olhando agitadamente para os lados com ar assustado, emendando então com um risinho sarcástico.
Um calafrio de raiva me correu o corpo e descarreguei-a chutando um pedregulho na impossibilidade de atingir meu companheiro de conversa. A verdade é que ele tinha razão. Era tarde. Minha namorada me deixara, eu tentei uma reaproximação, mas, apesar do diálogo amigável, as palavras ficaram entaladas na garganta. Não consegui expressar o que sentia, por mais tocante e verdadeiro que fosse.
– Aí você tentou ir pelas bordas, com medo de ir direto ao ponto, e ela acabou lhe escapando – disse ele, como se completasse o meu pensamento.
– Sim, pois nessa hora você apareceu e estragou tudo!
– Calma lá, meu caro! Menos! Pense bem: eu não disse nada, não fiz nada, você é que fez. Além do mais, nós dois estamos quase sempre juntos, não é mesmo?
– Para infelicidade minha... – disse eu, cabisbaixo.
Ele perdeu a calma e fez um gesto de desprezo.
– Ah, assim também é demais! Em todo esse tempo você ainda não se acostumou comigo? Não posso acreditar! E de quantas boas eu já livrei você?
– Sei lá – respondi, aborrecido –, não me lembro.
– Lembra, sim, eu não sou imagem e semelhança da sua memória, aposto como ela deve estar gritando na sua cabeça. Quantas vezes você estava pronto para soltar impropérios para o seu chefe e, na hora, você ficou calado?
– Que sujeitinho miserável, além de nos encher de trabalho, não pára de falar.
Ele então cresceu, com ar de vitória:
– Ah, eu não disse que você lembrava? – E, entre risos: – É verdade, não freqüento muito a praia do seu chefe, não gosto muito dele... mas não era disso que eu estava falando. Era das vezes em que o melhor é não dizer nada. Já na escola eu via você e, graças àquele jeito fechadão, calado...
Não resisti e revidei:
– Graças àquele jeito fechadão, calado, eu era o objeto das gozações. “Ah, pare de falar!”, “Não agüento mais ouvir a sua voz!”... Melhor, então, seria passar por bagunceiro e um dia fazer troça de alguém! Chega, chega, por que você não vai embora e me deixa um pouco em paz?
Ele sorriu, cordato:
– Experimente, então...
Interrompido o diálogo por alguns momentos, sentei-me num banco e minha visão escapou pelo meio das árvores, pelos caminhos, pelos paralelepípedos cinzentos que emergiam por trás do parque, num giro em busca de tranqüilidade. Quando voltei a visão para o lado que eu olhava antes, lá estava ele, sorrindo para mim. Levantei-me e reagi irritado, com os olhos fechados, as mãos nos ouvidos:
– Não, não, isso não pode ser, é uma tortura!
Quando vi, ele apenas contemplava a cena, batendo palmas, numa expressão cínica:
– Que espetáculo! Parece ainda aquela criança que não quer ouvir o que os pais dizem. Sabe de uma coisa? Você não tem jeito mesmo. Desisti de você. Sua namorada se foi porque ela prefere um sujeito de atitude, e agora a culpa é minha? As vezes em que eu estava lá, quando só em olhares vocês diziam tudo, você não lembra. Eu tentei ajudar, mas não adiantou. Se sua memória não lhe ajuda a trazer as palavras certas, meu caro, não posso fazer nada. Eu sou o seu silêncio, e agora você vai ter que aprender a conviver comigo.
Fiz um gesto, na tentativa de falar algo, mas ele se adiantou:
– Já disse: desisti de você.
Não consegui dizer mais nada. Saí andando, as mãos nos bolsos, e ele, calado, expressão séria, seguindo a meu lado, a uns dois passos de distância.

E o meu silêncio foi tão profundo que eu podia ouvir as folhas das árvores caindo.

(conto livremente inspirado na canção "Silence and I", de Alan Parsons e Eric Woolfson)

7.10.05

Angel

Mareja a doçura da alma
Ao raio que ataca o olhar –
Que, desenganado e com calma,
Responde: preciso amar.

Silêncio, não faças mais parte
Do dia, não tomes o ar
Nem da bela estrela a arte
De quem se encanta em cantar.

As asas de um anjo triste
Alegram-se de par em par
Corrente já não existe;
Liberta-te, sai a voar.

5.10.05

Patrício

– Tu és patrício?

A surpresa no meu "O quê?" certamente tornava desnecessária uma nova pergunta, mas ele gentilmente repetiu:

– Tu és patrício?

– Acho que não – respondi –, não que eu saiba.

Minha surpresa, na verdade, fazia muito menos sentido que a curiosidade do meu interlocutor, um empresário judeu que eu havia entrevistado. Afinal, aquela pergunta não era novidade para mim. O sobrenome engana. O tipo de rosto, alongado, com nariz meio avantajado, como têm também Ben Stiller ou Jerry Lewis, talvez enganem, ainda ajudados por meu cavanhaque... Tanto que eu já cheguei a me perguntar se meus ancestrais seriam judeus convertidos.

Pelo que sei hoje, é pouco provável. Mas, se fossem, isso não me incomodaria, pelo contrário. Foi com satisfação que descobri que, em meio à minha salada européia, tenho sangue indígena, confirmando o que ouvi, dez anos antes, do professor Moacyr Flores, numa excelente aula de História do Rio Grande do Sul.

Tenho simpatia pelo povo do Torá, embora pouco saiba a respeito. Nunca entrei em uma sinagoga, mas já fui a uma cerimônia fúnebre judaica. É incrível vê-los, tão brasileiros quanto eu, rezando em iídiche enquanto nós, cristãos, nada sabemos de latim. Cordeiro de Deus, tende piedade de nós...

Sempre ouvi falar também de sua união, sua disposição para se ajudarem mutuamente. Uma vez entrevistei o síndico de um edifício em que quase todos os moradores eram judeus. Ele não precisava contratar serviços de fora para o condomínio - contratava os serviços dos vizinhos. Essa "separação" pode parecer sectarismo, preconceito, mas, pensando bem, em nossa sociedade capitalista é cada um por si, ninguém está aí para nos ajudar.

Tenho mesmo simpatia por esse povo. Acho que os judeus deviam conviver pacificamente com os palestinos, que deveria haver na Terra Santa também um Estado palestino. Entretanto, é realmente admirável um povo ressuscitar uma língua morta, o que aconteceu com o hebraico no século XIX.

E quando descobri essa simpatia? Talvez tenha sido ao assistir ao filme "Tenha fé", uma estupenda comédia que mostra uma amizade inseparável entre um rabino (o Ben Stiller que eu citei) e um padre (Edward Norton, que também dirigiu o filme). E ao ver que tive, até hoje, algumas excelentes (embora poucas) amizades com judeus. Um de meus melhores amigos é judeu - apesar de ser pra lá de heterodoxo.

Sei lá, vai ver que, na parcela de sangue espanhol de minha mãe, havia alguma ascendência judaica - pois os judeus também tiveram importância na formação do povo espanhol, não foram só os árabes. Vai ver que eu tenho também algo de patrício, independentemente de sermos todos filhos de Noé. Contudo, ainda tenho muito a aprender sobre essa civilização. Pois, por coincidência, veio esta inspiração e eu nem sabia que anteontem era o dia do ano novo judeu.

Portanto, Hosh Hashaná!

4.10.05

Quases

Deixado em branco o papel
Quase inspiração
Local de encontro vazio
Quase pontual
A frase dita à metade
Quase se impôs
Amizade em teu adeus
Quase o coração

Bela flor que se encolhe
Moendo-se a si mesma
Por átimo faltou-lhe
Simples gota de chuva
E o pouco que murcha e definha
(num quase a vida desfaz-se)
É o pouco que aduba e renova
(num quase a vida renasce).

1.10.05

O nó da mudança

Cansei-me da dupla, quase tripla jornada. Chegou a hora de deixar o emprego no jornal. Nove anos bastaram. Reconheço, tenho muita sorte em poder dizer isto – mas cansei. Deixo, pelo menos por uns tempos, as palavras alheias para poder encontrar as minhas. Conseqüência, em parte, do mesmo sentimento que me moveu ao iniciar o blog.

Uma mudança como essa parece um longo corredor com uma porta ao fundo: por muito tempo vê-se, ao longe, a porta; mas, para atravessá-la, é necessário apenas um breve momento. Afinal, não é fácil deixar a profissão em que me enxergava desde a infância. Parece que somos diretores iniciantes nas mãos de um grande estúdio, e a vida e o acaso, produtores da película, nem sempre permitem que se mantenha o roteiro original. Mas prefiro considerar-me um diretor independente, rompendo as amarras com uma grande indústria de textos de 13 linhas, feitos para o leitor de hoje, que, infelizmente, não tem tempo para mais do que isso.


Mas não cuspo no prato em que me alimentei. Atravessar a porta de saída foi um momento estranho... e que também teve sua dificuldade.

Minha linha de tempo, mudando de direção, afastava-se (em definitivo?) das linhas dos meus colegas. E percebo, então, que esse tempo todo criou poucos pontos de toque entre as linhas. Tanto que a grande maioria conheceu minha decisão apenas na hora de sair. Alguns ainda não sabem até agora...

Alguns lugares-comuns, parabéns, felicidades, foi ótimo trabalhar contigo, as portas continuam abertas. Apenas uma colega diagramadora quis saber como me sentia e, com isso, conseguiu tocar mais fundo. Mas todos os cumprimentos foram sinceros, o coração vê a estima quando a encontra.

Por isso, a linha do tempo aos poucos foi se enrolando, enrolando, até eu perceber um nó, aqui, trancado. Duro foi segurá-lo... como é duro mudar o caminho! Mas a escolha estava feita, e eu só precisava segurar o nó por mais dez minutos, até estar em casa. Lá ele se desatou completamente, deixando então que a linha de tempo seguisse seu curso.

22.9.05

Seu Zé

Entre outras coisas que têm me afastado deste querido espaço de criação (a saber: trabalho, trabalho e trabalho), passei a me dedicar a uma oficina semanal de cinema, no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. Primeiro tema de casa? Um argumento para um curta-metragem, que deveria ter o museu como assunto ou local da ação. Fiquei muito feliz por meu argumento, entre 15 outros, ter sido o segundo mais votado. Nada mal para minha primeira aventura em texto cinematográfico! Com vocês, "Seu Zé".

* * *

Um grupo de estudantes fazendo pesquisa nos jornais do Museu percebe que todos os dias há um senhor misterioso que também faz consulta no acervo. Um dia, eles resolvem puxar conversa para conhecer melhor aquele homem. Mas, quando vêem, ele não está mais lá. Saem correndo atrás dele, descem pelo elevador, mas não encontram o homem misterioso. O zelador, que viu o que acontecia, explica que aquele senhor é o seu Zé, um saudosista que há muitos anos lê jornais e revistas antigos para entender melhor como o mundo se transformou.

Os estudantes vão embora. Mais tarde, o zelador percorre todo o Museu desligando as luzes para fechá-lo. Ao chegar ao local de pesquisa dos jornais, encontra o seu Zé, pesquisando, e se despede dizendo: “Até amanhã, seu Hipólito! Boa noite”.

6.9.05

As palavras

As palavras são livres
Assim como é livre o escritor
Mas ele está preso às palavras
Vai até onde chegarem
Vai por vezes e volta
Noutras vezes nem vai.

As palavras dividem
A vida em capítulos –
Amores, Dores,
Indiferença, Silêncio,
Descoberta, Amizade,
Inconstância, Promessa.

As palavras são cordas
Que jogo a quem as agarre
Por elas sonhos subiram
E um dia marcaram
Por elas já me puxaram
Pensando que fosse brinquedo.

As palavras minhas
E os meus sentimentos
São tudo o que tenho
Se eles nada disserem
A quem mais me importa
O que me resta?

2.9.05

Haikais gêmeos



livre borboleta
entre árvores escolhe
qual seu beijo enfeita
***
nuvem no ocaso
fica toda colorida
vira algodão-doce
***

29.8.05

Versos turvos

Encaro nos traços deixados algures
A indelicadeza de um pouso forçado
E a queda estilhaça respeito e estima
Valor diluído em posse e orgulho.

Tentei levantar-me, grilhão das palavras,
Mas quedo calado com tal prepotência
De um tempo que espera manter-se intacto
Não vendo a vida escapar-lhe entre os dedos.

Os versos são brancos, os tempos são turvos
Quem dera não visse, em tal desalinho
O zelo e o perjúrio, o afeto e a torpeza,
Mas tudo que passa carimba o futuro.

E a dor que agride, que trama, que castra
É fonte ela mesma de mais liberdade,
Me torna aconchego aos doces sentidos
E, à fria dureza, a rude muralha.

27.8.05

Tormento

Vento batendo a noite inteira
E não varre este meu pensamento:
Quando aparece a luz primeira?
Quando se muda em sono o tormento?

Depois de um dia de alegres cores
Purpúreo ocaso, só ilusão
Eleva nos ares fortes rumores
Do vento troando na escuridão.

Viro-me ao céu e, no afã de vê-la,
Em silêncio estendo meu grito:
Onde encontro a minha estrela,
Luz que refulge no infinito?

E eis que entre as nuvens ela aparece
E ouço uma voz em tímido brilho:
“O mesmo vento que o sono estremece
Tem o mais belo sonho por filho”.

23.8.05

Nós, o arquipélago

"Uma pessoa não passa duma porção de paixões, cercada de incompreensão por todos os lados".
(Erico Verissimo, em "O Continente")

22.8.05

"Hotel Ruanda" e os holocaustos modernos

Fiquei a me perguntar, ao sair ontem à tarde, de um cinema de shopping em um bairro de classe média-alta, o que pensavam aqueles shopping-goers, perfumados, pele alva e roupas de grife, do filme a que tinham acabado de assistir – e o que estariam pensando de si mesmos. Pois, ao terminar de ver "Hotel Ruanda", não pude deixar de sentir uma ponta de vergonha de minha origem caucasóide.

A trama básica de "Hotel Ruanda" assemelha-se a uma "Lista de Schindler" transposta para os conflitos étnicos na África. Em 1994, em meio a uma revolta da maioria hutu contra a minoria tutsi, que resultou na morte de mais de 1 milhão de pessoas, Paul Rusesabagina (interpretado por Don Cheadle), um hutu, acaba dando refúgio a centenas de tutsis no hotel que ele gerencia na capital de Ruanda, Kigali. O filme faz lembrar também "Um grito de liberdade", no qual o jornalista sul-africano Donald Woods (Kevin Kline) precisa escapar de seu país, dominado pelo apartheid, levando consigo o livro que escrevera sobre o líder negro Steve Biko (Denzel Washington). Duas histórias reais, dois elencos premiados, dois dramas contagiantes sobre temas relacionados – entretanto, "Hotel Ruanda" é muito superior.

Além de "Um grito de liberdade" sofrer com um corte brusco de ritmo e de plot com a morte de Biko, o filme mostra o sofrimento dos povos negros da África sob o ponto de vista de um branco. Em "Hotel Ruanda", o afroamericano Don Cheadle, além de balizar magistralmente a história do início ao fim (o que lhe valeu uma indicação para o Oscar de Melhor Ator), vivencia em seu papel a difícil sobrevivência do próprio Rusesabagina durante a revolta hutu. Ao dar abrigo aos tutsis, o gerente do hotel se torna também um refugiado, pois é considerado um traidor pelos demais hutus, e teme pela vida da sua família – a esposa de Paul, Tatiana, é tutsi. Por este papel, Sophie Okonedo também recebeu indicação para o Oscar de Atriz Coadjuvante.

A contundência de "Hotel Ruanda" está em nunca perder o ritmo da ação, bem dirigida pelo irlandês Terry George, que ainda assina, com Keir Pearson, o roteiro. Este também foi indicado para o Oscar este ano, por, de forma hábil e consistente, entremear a luta de Rusesabagina, que lança mão de todos os recursos possíveis para proteger os refugiados – incluindo suborno e relações advindas do cargo que detinha –, com cenas do verdadeiro genocídio que se tornou a revolta hutu e a incapacidade de ação dos "capacetes azuis" da ONU, liderados por um patético coronel vivido por Nick Nolte.

Mais patético ainda, contudo, é saber que as diferenças entre hutus e tutsis foram insufladas, por motivos políticos, pelos colonizadores belgas após a Segunda Guerra Mundial, o que o filme também denuncia – a mesma tática usada há décadas no Oriente Médio por aquela nação que diz defender a paz e a liberdade, comanda a ONU e, ao mesmo tempo, lidera a produção mundial de armamentos. "Hotel Ruanda", uma co-produção britânica, sul-africana e italiana, serve para lembrar que holocaustos provocados pelo ódio entre etnias não são exclusividade da Alemanha nazista – eles continuam sendo promovidos pelas grandes potências, uma vergonha que não deve ser esquecida.

Foto: www.rottentomatoes.com

16.8.05

16 de agosto

Gosto de lembrar certas datas. Alguns poderiam lembrar que 16 de agosto é o Dia do Filósofo. Mas, para mim, esse dia é importante por um motivo completamente diferente. Não fosse um 16 de agosto e eu certamente não estaria aqui.

Há exatos quatro anos, recebi resposta a um e-mail em que eu convidava uma paranaense, estudante de Letras, chamada Karen, para bater papo sobre cinema. O que me fez “pinçá-la”? Por coincidência, ambos havíamos feito comentário sobre o filme “Quase famosos”, de Cameron Crowe, no site Fulano – na época em que o Fulano era divertido –, e eu gostei muito do texto que ela escreveu.

Esse dia foi um divisor de águas.

Efetivamente, começamos a trocar idéias sobre a sétima arte (mas primeira na nossa preferência!) – e, da superfície das telas, passamos para a dos livros. Na mesma época, uma colega jornalista havia emprestado “O perfume”, que eu vinha lendo no ônibus, indo para o trabalho. Quando terminei a história do fascinante e abjeto Grenouille e fechei o livro, senti um vazio indescritível. No dia seguinte, eu estava em uma livraria para comprar “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, e iniciar tardiamente uma feliz viagem sem volta.

Depois, diversas influências foram se somando, e eis-me aqui, arriscando-me na literatura e não descartando a possibilidade de um dia me aventurar no cinema. Por isso neste dia lembro a Simona (gracias por el libro!); todas as amizades virtuais, que vêm me ensinando a escrever; a Martha, minha mulher, que me deu corda para levar adiante a idéia de meu primeiro livro; a Katinha, que sem querer me apresentou o Blogger... mas, principalmente, a Karen, minha amiga até hoje, que não fazia idéia do que aquele e-mail representaria, e o Cameron Crowe, que, com seus “Quase famosos”, deu asas a um praticamente desconhecido.

Omissão impossível

Há um bom tempo que me vem uma vontade de, simplesmente, prosear. Da mesma forma, um assunto vem me rondando neste blog: cinema. Decidi, então, matar os dois coelhos num só golpe.

A peteca me veio jogada por outro blog, do Eduardo Gameiro, que roteirizou “Sem Ana”, um trabalho selecionado para a mostra competitiva do Gramado CineVideo, evento paralelo ao Festival de Cinema. Poucos vão ficar sabendo dessa informação, pois o site oficial julga importantes apenas direção, edição, direção de arte, fotografia e trilha sonora. Roteiro e produção (Janie Paula e Eduardo Saraiva) foram ignorados.


Até posso compreender, como jornalista, que não haja condições para que os meios de comunicação coloquem a ficha técnica inteira dos filmes. Os jornais não têm espaço suficiente; rádios e TVs não dispõem de tempo. Agora, o site tem um considerável espaço vazio embaixo das informações do filme. Falta de tempo? Não acredito. O Festival começou ontem, dia 15, mas as ausências já estavam lá no dia 10.

Pode parecer pouca coisa, ainda mais que o valoroso roteirista está anunciando seu trabalho e se mostrando feliz em ter chegado lá – apesar dos deslizes da divulgação oficial do evento. E apesar da importância do roteiro – se os atores são as “caras” do espetáculo e o diretor é quem manda no filme, o roteirista é o dono da história, às vezes sobrepujando a importância do diretor, vide “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”.

Tudo isso me parece sintomático do pouco cuidado com o valor da informação e também da pouca importância dada aos novos valores em um mercado abarrotado de filmes, no qual os brasileiros (que não vão aparecer sem uma fornida muralha de propagandas antes da projeção do primeiro fotograma) ainda têm muita dificuldade frente aos arrasa-quarteirões made in Hollywood e muitos filmes de excelente qualidade técnica e de conteúdo, mesmo estrangeiros, ficam pouquíssimo tempo em cartaz por exigirem um Q.I. de dois dígitos. Inclusive os filmes mais alardeados mundialmente estão proibidos de permanecer muito tempo nas telas – ora, temos que lançar em DVD e vídeo o quanto antes!

Nunca fiz nada em cinema seriamente, mas também sou um anônimo do mundo da comunicação. É um espaço difícil para ser conquistado por nós, terceiro-mundistas. Nem Fernanda Montenegro, a brasileira que chegou mais perto de um Oscar, tem foto no mais completo site de cinema, o IMDb. Até o Eduardo chegar deve levar tempo... mas a sobrevivência dos festivais, que já vi seriamente ameaçada na época em que eu estudava Jornalismo, e conquistas como a de tantas equipes de heróis como a de “Sem Ana” mostram que ainda existe espaço.

10.8.05

Tempo, tempo, tempo, tempo (sempre ele)


Um clique... e a câmera capturou uma fração de segundo em que a essência da vida se manifestava. Tomou emprestado, da mãe e da filha, um átimo de felicidade para lhes devolver para sempre esse momento.

Que importam eventuais erros que, no futuro, a jovem e alegre mãe possa cometer, ou a dificuldade que ela tiver para ensinar uma eternamente incompreendida menina-moça? Adivinho na foto uma marca deixada pela mãe, tão forte que o tempo não poderá desfazer. A sorridente filha não sabe ainda, mas já agradece à mãe o carinho, o amor que recebe, o que deve se projetar em cada dia da vida dessas duas mulheres.

Pois cada segundo hoje é determinante para a vida inteira – que dirá para a criança, quando tiver real consciência de um segundo, um dia, uma vida! Como nem todos os segundos valem uma lembrança, bom seria que o máximo deles se parecesse com o instante captado pela fotografia. Por isso, oro ao Senhor Tempo, como fez Caetano Veloso, pelo prazer legítimo, pelo movimento preciso, pelo brilho do espírito para que cada momento seja digno daquele que lhe vai suceder.

E então, quem sabe, qual mãe abraçando sua filha, cada instante seja um rosto que, ao calor do nosso, acende um sorriso e transmite uma fagulha de imortalidade desse momento.

1.8.05

Inspiração

Folheio páginas d’um coração,
imagens que se multiplicam,
dividem-se em frases e sons.

Troveja o bater da inspiração
Mas quantas palavras indicam
Aqui residir esse dom?

Meu reino por uma palavra!
Que um dia meu coração diga –
“Faça-se, então, poesia”.

Quisera minha própria lavra
Achar numa alma amiga
Os ecos de doce alegria.

E quem sabe, em frase inspirada,
Eu possa enfim renascer
E perpetuar o meu viço.

Afinal, sou tudo, sou nada –
Tudo o que eu decidir ser
E nada, mas nada além disso.



(Inspirado nas páginas diárias de uma amiga querida)

22.7.05

Reflexo

O fim do dia me envolve –
Melancolia que chove
E o meu pensamento
Se ri do lamento
E rumo à alegria se move.

Além do vidro embaçado
Irrefletido, ao meu lado
A imagem me invade
(agridoce saudade)
De um sorriso lindo e amado.

19.7.05

O atirador

I

Lentamente, parou e assestou a arma à janela. Passou a observar, à espera de um deles. Com a calma e a paciência de quem tem todo o tempo do mundo para fazê-lo e, também, com a convicção de que tinha de ser naquele dia, como se fosse a última oportunidade. Certamente não o seria, mas, em toda vez que perseguia sua meta – mistura de objetivo e diversão, de profissão e válvula de escape –, agia assim. Invariavelmente. Outra vez, ali, do alto daquela janela, esperava vê-los aparecer por entre as árvores.

Municiou e carregou a arma, após ter certeza de estar numa posição bem cômoda. Acertou a mira, a lente telescópica não lhe dava dúvidas de que acertaria a cada tentativa. Eles não eram muitos, apareciam só ocasionalmente naquele local, e ninguém podia se dar ao luxo de desperdiçar uma chance como aquela. O sol estava brilhando naquela tarde quente de fim de primavera, como no primeiro dia. E todos eles passavam à sua vista em outros lugares, pois sabiam que o perigo rondava apenas aquela janela, aquele edifício, tinha de ser ali. E tinha de ser naquele dia, ao fim da longa espera de um ano. De tal maneira que eles já sabiam por onde não passar. Mas nem todos. Os mais jovens e inexperientes não tomaram conhecimento, e – finalmente um! Ele treme de emoção, de início, mas se controla e firma a mira da arma para não errar.

Frio, vê seu alvo, que, apenas por alguns instantes, baila inocente e ingênuo à frente de seus olhos. Brinca, evolui, goza de seus últimos momentos, pois o rifle já foi disparado.

Vagarosamente, em fração de segundo, o projétil penetra e o cérebro da vítima, sem pensar, mas sentindo, paralisa. Cai e se espatifa no chão rígido, para deleite do atirador, ao ver a longa queda – de alguns segundos para ele, mas eterna para o alvo.

A missão, naquele ano, estava cumprida. Já se prepararia para o ano seguinte, a espera outra vez seria recompensada pelo inimigo morto. Contabilizou o lucro e foi embora, satisfeito e realizado mais uma vez. Muito pouca gente, lá embaixo, repararia em um pombo morto no chão.


II

O atirador pára e tenta retornar, lembrar o acontecido de novo. Não vai ser difícil; certas experiências nunca são esquecidas, especialmente quando são capazes de modificar totalmente uma pessoa. E ele é gente, é pessoa, e sofre com isso. Mas cada um pode achar o seu próprio remédio.

No caso dele, o “ópio” já tinha sido encontrado. Era naquela janela, naquele preciso dia que procurava os pombos para se preencher. Fora daquilo, nada mais podia importar. Só atacar o inimigo para defender o orgulho. Eis o alimento. Aproveite, dizia a si próprio. Todo um ano vai depender disso. Então, por que não sacrificar um dia? Era isso, portanto, o que fazia. E fazia da melhor maneira possível. Para si mesmo. Agressivo, planejado, satisfatório.

À hora de dormir, ficou pensando, com todas aquelas imagens girando a sua volta. Elas se misturavam com as paredes sem cor do quarto, acinzentado pela escuridão. Logo, a realidade se confundia com o subconsciente e, sem sentir nem lembrar, passou pelo limiar que o separava da outra dimensão – a do impossível.

Em alguns instantes, estava vendo outras coisas, numa escuridão repentinamente coberta de luz. Tudo, de muito tempo, parecia como novo outra vez (ah, e como houve vezes!). Novamente, apareciam cenas recentes, mas que diziam por trás cansadas e desgastadas.

A névoa se dissipa, e um homem olha por uma janela. É uma pessoa muito conhecida e importante, em um local familiar. Tem abaixo uma bela paisagem, que subitamente toma formas e cores. Entretanto, surgem aqueles pássaros, não se sabe de onde, mas que parecem mostrar uma intenção inamistosa. De repente, atrapalhado com o ruflar de asas, um gigantesco buraco se abre no chão e não existe mais equilíbrio para aquela pessoa. Fim de tudo.

O atirador acorda, lembra e reconhece com afeto e tristeza a pessoa. Aquele rosto de sonho estava num porta-retrato, para que não houvesse dúvidas da fisionomia; mais uma vez desperto, ele senta na cama e deixa o suor dar lugar a algumas lágrimas.


III

Já se sentia acostumado àquilo, pois já tinha acontecido outras vezes. Como um relógio – e até mais preciso, pois, embora falhasse, só poderia parar uma vez –, sua mente todos os anos evocaria aquele sonho, meio advertência, meio maldição. Era o aviso de que, apesar do compromisso descartado naquela oportunidade, tudo começaria de novo. O ciclo se repetia, como de costume, e o atirador podia então voltar à vida normal.

“Normal?” – ele se pergunta. E fica uma ponta de dúvida.

Qual era o parâmetro da normalidade? Era isso que o fazia com que se questionasse. Por acaso, quando passava pela fase de meditação e sofrimento, quando a iminência da chegada daquele dia capital o perturbava, abalando completamente a sua rotina, ele deixava de ser normal? Ver-se às voltas com a incerteza não era peculiar ao homem? (Num parêntese, por um segundo, ele quis ser pássaro também, para morrer, mas pelo menos sem o pesadelo proporcionado pelo raciocínio.) E será que mais essa dúvida se aglomeraria, como bola de neve, ao seu problema?

Ora, que nada! Se o objetivo tinha sido cumprido mais uma vez, e tudo já tinha passado... a foto continuaria junto à cama em seu quarto, os pombos continuariam existindo, mas aquela janela ainda estaria lá em cima, esperando por um dia de fim de primavera, para ser escora de seu rifle. Tudo continua!, e estava conformado.

Assim como acontecia com os pombos caídos na calçada, ninguém faria dele um cara diferente. Para todos, ele parecia um cidadão comum – e quem não parece? Pois, à frente daquilo que, de repente, podia acontecer a qualquer um, também estava uma pessoa que fazia sua parte na vida. Nada se mostraria estranho.


IV

A cena se repete para aquele cidadão, o atirador: escolhe a munição que vai utilizar, limpa a arma, guarda-a na caixa que a vai ocultar, o dia está chegando. Em um momento, ele lembra que, desde que cumprida a determinação, estará liberto de quaisquer outros problemas; afinal, o último ano havia ocorrido até sem obstáculos.

Com mais tranqüilidade, ele se dirige para o local: a natureza mais uma vez não tinha sido avessa aos seus sentimentos, e havia proporcionado um belo dia, em outro dezembro.

Entretanto, vê-se perdido: tinha tomado o caminho certo e, no entanto, não encontra o prédio exato, do qual miraria em alguns pobres pássaros. A surpresa toma conta dele, e se transforma em pânico em poucos segundos, ao descobrir o local que procurava, mas não o edifício, que havia sido posto abaixo. Só se vêem destroços do prédio.

Mais arrasado ainda está o atirador, que treme inteiramente, percebe os pés dormentes como que fugindo do chão. Nada pode fazer, porque o local não poderia ser outro, só aquela janela, ele está completamente aturdido. No meio da rua, de supetão, sem controle de seus atos, abre a caixa e carrega sua arma. Começa a atirar para qualquer direção, mesmo que seja em outras pessoas, uma vez que não pôde procurar por seus alvos – nesta hora, eles são outros, a confusão do atirador não lhe permite discernir – e porque não teria coragem de balear a si próprio, embora, talvez, fosse o que desejava.

Mas isso não será necessário: uma explosão diferente daquelas produzidas pelo seu rifle se destaca e, como um pássaro alvejado – assim ele imaginou que fosse –, sente seu corpo arder. Não é doloroso, mas é impaciente e angustiado. Estonteado, pára de atirar, o ruído do último tiro ainda ecoa em sua mente enquanto cai no chão.

Estivera lá, era ele, mas não era dele que tinha feito aquilo. Depois daqueles momentos, só gritos, o céu e cabeças girando à sua volta, o seu corpo algumas vezes sendo pisado e chutado. Agora sente dor, mas isso já é o de menos... gritos, o céu, gritos, pessoas, gritos e um gosto de sangue.

No dia seguinte, era sua a foto que apareceria, em destaque, em alguns jornais. Lembram sua estranheza exterior, mas esqueceram seu interior, igual ao de todo mundo.

* * * * * * *

Este é meu primeiro (e por enquanto único) conto. Foi escrito em 1987 e publicado na revista Sextante, da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs, em 1990.

16.7.05

Final alternativo

Uma inspiração rápida, um tempo curto, e meu texto fez uma querida amiga dizer o que na pressa eu havia omitido. Como um molho de chaves ou um número de telefone, ficou ao lado do teclado, esquecida, minha emoção.

Deixei-me levar pela racionalidade fria da análise de coincidências e não parei para me olhar no espelho e ver o que da memória nele se refletia. Por isso vuelvo a los 17... afinal, “deveria haver nesse intervalo mágico de 365 dias (...) algo que os outros não tinham – algo esse que eu não percebia”.


E se, agora, eu tentasse perceber?

Eu veria que, apesar do brilho dos meus 24 anos, nem por isso meus 17 foram obscuros. Os sonhos pareciam uma névoa disforme, mas daqueles dias em que se vê, difusa, a luz do sol. Tempos de assuntos desinteressantes no colégio, mas de mais clareza quanto ao futuro imediato, uma vez que o futuro remoto não havia sido ainda inventado aos 17. A flor do amor-perfeito ainda não desabrochara no jardim, mas já habitava minhas aspirações. Amigos, música, tempo, diversão... e a inevitável batalha entre hormônios e timidez, surpreendente descoberta – embora as vitórias do superego fossem mais freqüentes que as do id.

“We’ve got tonight”, “Hard to say I’m sorry”, “You and I”... ah, mas melhor para dançar era “Making love”, pois tem dois minutos a mais. O outro lado da meia-noite, território não mais desconhecido. Bate-papos e passeios na rua até de madrugada, pois o amigo do alheio não existia, ou estava, isso sim, alheio. Como eu, alheio aos gritos de “Diretas já” nas ruas - os ouvidos eram só para as canções pop descartáveis do rádio - ou o rock “guerrilheiro” de certa banda de Brasília que havia lançado seu primeiro disco e parecia promissora (será?). Futebol de botão - com amigos do bairro, e não com meu avô, que, infelizmente, faleceu também nos meus 17 anos. No cinema, os cartazes apresentavam “Amadeus”, que eu só fui ver anos depois. No futuro, estava apenas o vestibular, fronteira a ser desbravada e que, se não o fosse em seguida, o tempo daria outra chance.

Agora, os tempos são outros, as fronteiras são outras, e quais tenho a chance de desbravar? A da emoção, talvez, de forma bem tímida, como já disseram, mas já a vejo ao longe. E a dos sonhos, talvez não mais disformes, mas que valem a pena serem relembrados, alumiando assim o caminho para os 17 que estão por vir.

12.7.05

Volver a los 17

“De par en par la ventana
se abrió como por encanto
y entró el amor con su manto
como una tibia mañana
y al son de su bella diana
hizo brotar al jasmin
volando cual zerafin
al cielo le puso aretes
y mis anos en 17
los convirtió el querubín.”

(Violeta Parra)

Estava eu com 17 anos quando uma prima, dois anos mais nova, manifestou “como deve ser bom ter essa idade”. Também aos 17, um colega de curso de Inglês, que já havia chegado aos 24, afirmou: “Aproveita essa idade, é a melhor fase da tua vida”. Curiosa essa convergência de opiniões, vindas de duas pessoas de idades tão diferentes... O rapaz de 24 sente saudade da mesma idade cuja chegada a adolescente de 15 mal consegue esperar. Deveria haver nesse intervalo mágico de 365 dias, portanto, algo que os outros não tinham - algo esse que eu não percebia.

E continuo não percebendo, pois meus 24 não foram ruins a ponto de eu considerar os 17 tão melhores. Aos 17, eu estava sozinho; aos 24, estava namorando. Aos 17, no segundo grau, aprendia matérias que pouco me interessavam; aos 24, prestes a me formar em Jornalismo, estava cheio de planos e começava a adquirir um verdadeiro gosto por escrever. A iminência de me deparar com o mundo real dos recém-formados não me assustava tanto quanto a lembrança de que precisaria me alistar no ano seguinte.

O que me parece fazer sentido em meio a tantos aparentes contra-sensos é a diferença de situações. Meu colega de Inglês não teve oportunidade de fazer faculdade, estava trabalhando e ia se casar. Talvez os 17 dele tivessem sido melhores, com menos preocupações. E talvez chegar aos 17 fossem, para minha prima, o sonho de poder conquistar, dali a um ano, todos os direitos de uma maioridade cujas responsabilidades meu colega de Inglês já conhecia muito bem.

Voltar aos 17... vejo isso agora como um símbolo para um tempo, individual, que mescla os sonhos e a alegria da adolescência com o poder e a independência da vida adulta. Cada um tem seus 17 - os de Violeta Parra, assim como os de meu colega e os das aspirações de minha prima, caíram justo aos 17.

Agora que já somei 17 aos 17 e ainda mais alguma coisa, percebo que os meus 17 não caíram em um tempo assim definido. Entretanto, muito antes de eu conhecer a canção e de perceber a estranha coincidência que ligou minha prima e meu colega de Inglês, que nunca se viram, toda vez que eu dava vazão a meu lado mais alegre, mais criança grande, mais despreocupado, por alguma razão que desconheço esse lado tinha idade definida: 17.

11.7.05

Oops!

Escrever também é errar...

Eu havia esquecido, entre as perguntas do jornalismo, o "quando". Fiquei entre deixar por isso mesmo (o que algum planeta meu em Virgem não permitiu), editar o texto na camufla e admitir o erro. Como preferi a alma nua à maquiagem...

9.7.05

Nada se cria

O rato roeu a roupa do rei de Roma e a rainha disse: “O rei está nu”. Hmmm, não, não é assim que começa. Quem sabe assim: o gato comeu a história do rei, e a rainha de raiva rasgou o resto do rascunho...

Na verdade, aproveitei o gancho deixado dias atrás por minha amiga Katinha para ver se finalmente conseguia pôr o preto no ocre. Como todo jornalista que se preze, aproveito ganchos. Cada parágrafo novo da minha matéria tem que aproveitar um gancho deixado pelo anterior. O texto da revista resume o que os jornais publicaram ao longo da semana; o jornal, por sua vez, “chupa” informações da concorrência, da TV e do rádio... e mesmo o repórter que está lá acompanhando o nascimento da notícia não faz mais que captar e interpretar informações que outros criam para ele. Talvez por isso, neste mundo de gatos, vampiros e sanguessugas, muitos com o rei na barriga, seja tão difícil criar uma idéia nova. Nada se cria, tudo se maquia.

Por isso alguém que por acaso passou por esta página viu um título, três ou quatro linhas explicativas e nada mais. Isso já faz uma semana. O gato comeu a inspiração do autor, a qual teimava em não voltar. Deus sabe o que custou para sair o primeiro parágrafo. Mas talvez aí mesmo resida o primeiro passo. Porque não quero fazer deste blog um diário sentimental, nem me vejo em condições de contribuir para nossa literatura. Já disseram que eu sou um escritor de mão-cheia, mas abri as mãos e nelas não vi muito mais que duas letras M.

Entretanto, senti um dia uma comichãozinha de escrever algo diferente, que fugisse às batidas cinco perguntas do jornalismo (quem, o quê, como, onde, por quê), mesmo que não agrade. E – como me fizeram recordar os escritos de minha amiga – a palavra que o rei procurava para iniciar sua história está em qualquer lugar, ao lado dele, nas piadas do bobo da corte, nos planos para seu reinado ou simplesmente em seus sonhos, sua fantasia. Então, encorajei-me e resolvi inaugurar meu espaço com a dificuldade para inaugurá-lo.

Quem sabe isto sirva de exercício para minhas idéias e minhas palavras. Afinal, escrever é ao mesmo tempo dominar as palavras e dar-lhes asas. De certa forma, eu me desnudo, e não o rei – mas antes uma alma nua que páginas vazias.