19.7.05

O atirador

I

Lentamente, parou e assestou a arma à janela. Passou a observar, à espera de um deles. Com a calma e a paciência de quem tem todo o tempo do mundo para fazê-lo e, também, com a convicção de que tinha de ser naquele dia, como se fosse a última oportunidade. Certamente não o seria, mas, em toda vez que perseguia sua meta – mistura de objetivo e diversão, de profissão e válvula de escape –, agia assim. Invariavelmente. Outra vez, ali, do alto daquela janela, esperava vê-los aparecer por entre as árvores.

Municiou e carregou a arma, após ter certeza de estar numa posição bem cômoda. Acertou a mira, a lente telescópica não lhe dava dúvidas de que acertaria a cada tentativa. Eles não eram muitos, apareciam só ocasionalmente naquele local, e ninguém podia se dar ao luxo de desperdiçar uma chance como aquela. O sol estava brilhando naquela tarde quente de fim de primavera, como no primeiro dia. E todos eles passavam à sua vista em outros lugares, pois sabiam que o perigo rondava apenas aquela janela, aquele edifício, tinha de ser ali. E tinha de ser naquele dia, ao fim da longa espera de um ano. De tal maneira que eles já sabiam por onde não passar. Mas nem todos. Os mais jovens e inexperientes não tomaram conhecimento, e – finalmente um! Ele treme de emoção, de início, mas se controla e firma a mira da arma para não errar.

Frio, vê seu alvo, que, apenas por alguns instantes, baila inocente e ingênuo à frente de seus olhos. Brinca, evolui, goza de seus últimos momentos, pois o rifle já foi disparado.

Vagarosamente, em fração de segundo, o projétil penetra e o cérebro da vítima, sem pensar, mas sentindo, paralisa. Cai e se espatifa no chão rígido, para deleite do atirador, ao ver a longa queda – de alguns segundos para ele, mas eterna para o alvo.

A missão, naquele ano, estava cumprida. Já se prepararia para o ano seguinte, a espera outra vez seria recompensada pelo inimigo morto. Contabilizou o lucro e foi embora, satisfeito e realizado mais uma vez. Muito pouca gente, lá embaixo, repararia em um pombo morto no chão.


II

O atirador pára e tenta retornar, lembrar o acontecido de novo. Não vai ser difícil; certas experiências nunca são esquecidas, especialmente quando são capazes de modificar totalmente uma pessoa. E ele é gente, é pessoa, e sofre com isso. Mas cada um pode achar o seu próprio remédio.

No caso dele, o “ópio” já tinha sido encontrado. Era naquela janela, naquele preciso dia que procurava os pombos para se preencher. Fora daquilo, nada mais podia importar. Só atacar o inimigo para defender o orgulho. Eis o alimento. Aproveite, dizia a si próprio. Todo um ano vai depender disso. Então, por que não sacrificar um dia? Era isso, portanto, o que fazia. E fazia da melhor maneira possível. Para si mesmo. Agressivo, planejado, satisfatório.

À hora de dormir, ficou pensando, com todas aquelas imagens girando a sua volta. Elas se misturavam com as paredes sem cor do quarto, acinzentado pela escuridão. Logo, a realidade se confundia com o subconsciente e, sem sentir nem lembrar, passou pelo limiar que o separava da outra dimensão – a do impossível.

Em alguns instantes, estava vendo outras coisas, numa escuridão repentinamente coberta de luz. Tudo, de muito tempo, parecia como novo outra vez (ah, e como houve vezes!). Novamente, apareciam cenas recentes, mas que diziam por trás cansadas e desgastadas.

A névoa se dissipa, e um homem olha por uma janela. É uma pessoa muito conhecida e importante, em um local familiar. Tem abaixo uma bela paisagem, que subitamente toma formas e cores. Entretanto, surgem aqueles pássaros, não se sabe de onde, mas que parecem mostrar uma intenção inamistosa. De repente, atrapalhado com o ruflar de asas, um gigantesco buraco se abre no chão e não existe mais equilíbrio para aquela pessoa. Fim de tudo.

O atirador acorda, lembra e reconhece com afeto e tristeza a pessoa. Aquele rosto de sonho estava num porta-retrato, para que não houvesse dúvidas da fisionomia; mais uma vez desperto, ele senta na cama e deixa o suor dar lugar a algumas lágrimas.


III

Já se sentia acostumado àquilo, pois já tinha acontecido outras vezes. Como um relógio – e até mais preciso, pois, embora falhasse, só poderia parar uma vez –, sua mente todos os anos evocaria aquele sonho, meio advertência, meio maldição. Era o aviso de que, apesar do compromisso descartado naquela oportunidade, tudo começaria de novo. O ciclo se repetia, como de costume, e o atirador podia então voltar à vida normal.

“Normal?” – ele se pergunta. E fica uma ponta de dúvida.

Qual era o parâmetro da normalidade? Era isso que o fazia com que se questionasse. Por acaso, quando passava pela fase de meditação e sofrimento, quando a iminência da chegada daquele dia capital o perturbava, abalando completamente a sua rotina, ele deixava de ser normal? Ver-se às voltas com a incerteza não era peculiar ao homem? (Num parêntese, por um segundo, ele quis ser pássaro também, para morrer, mas pelo menos sem o pesadelo proporcionado pelo raciocínio.) E será que mais essa dúvida se aglomeraria, como bola de neve, ao seu problema?

Ora, que nada! Se o objetivo tinha sido cumprido mais uma vez, e tudo já tinha passado... a foto continuaria junto à cama em seu quarto, os pombos continuariam existindo, mas aquela janela ainda estaria lá em cima, esperando por um dia de fim de primavera, para ser escora de seu rifle. Tudo continua!, e estava conformado.

Assim como acontecia com os pombos caídos na calçada, ninguém faria dele um cara diferente. Para todos, ele parecia um cidadão comum – e quem não parece? Pois, à frente daquilo que, de repente, podia acontecer a qualquer um, também estava uma pessoa que fazia sua parte na vida. Nada se mostraria estranho.


IV

A cena se repete para aquele cidadão, o atirador: escolhe a munição que vai utilizar, limpa a arma, guarda-a na caixa que a vai ocultar, o dia está chegando. Em um momento, ele lembra que, desde que cumprida a determinação, estará liberto de quaisquer outros problemas; afinal, o último ano havia ocorrido até sem obstáculos.

Com mais tranqüilidade, ele se dirige para o local: a natureza mais uma vez não tinha sido avessa aos seus sentimentos, e havia proporcionado um belo dia, em outro dezembro.

Entretanto, vê-se perdido: tinha tomado o caminho certo e, no entanto, não encontra o prédio exato, do qual miraria em alguns pobres pássaros. A surpresa toma conta dele, e se transforma em pânico em poucos segundos, ao descobrir o local que procurava, mas não o edifício, que havia sido posto abaixo. Só se vêem destroços do prédio.

Mais arrasado ainda está o atirador, que treme inteiramente, percebe os pés dormentes como que fugindo do chão. Nada pode fazer, porque o local não poderia ser outro, só aquela janela, ele está completamente aturdido. No meio da rua, de supetão, sem controle de seus atos, abre a caixa e carrega sua arma. Começa a atirar para qualquer direção, mesmo que seja em outras pessoas, uma vez que não pôde procurar por seus alvos – nesta hora, eles são outros, a confusão do atirador não lhe permite discernir – e porque não teria coragem de balear a si próprio, embora, talvez, fosse o que desejava.

Mas isso não será necessário: uma explosão diferente daquelas produzidas pelo seu rifle se destaca e, como um pássaro alvejado – assim ele imaginou que fosse –, sente seu corpo arder. Não é doloroso, mas é impaciente e angustiado. Estonteado, pára de atirar, o ruído do último tiro ainda ecoa em sua mente enquanto cai no chão.

Estivera lá, era ele, mas não era dele que tinha feito aquilo. Depois daqueles momentos, só gritos, o céu e cabeças girando à sua volta, o seu corpo algumas vezes sendo pisado e chutado. Agora sente dor, mas isso já é o de menos... gritos, o céu, gritos, pessoas, gritos e um gosto de sangue.

No dia seguinte, era sua a foto que apareceria, em destaque, em alguns jornais. Lembram sua estranheza exterior, mas esqueceram seu interior, igual ao de todo mundo.

* * * * * * *

Este é meu primeiro (e por enquanto único) conto. Foi escrito em 1987 e publicado na revista Sextante, da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs, em 1990.

Um comentário:

Katia K. disse...

Andas inspirado, não? Parabéns pelos textos, adoro passar no seu blog e ver que não perdeste a arte com as palavras ;-)
Abraços e poesia, sempre!