24.9.10

Onze minutos definitivos



Eu não havia ainda assistido ao filme "11 de Setembro", de 2002, no qual onze cineastas de diversas nacionalidades reúnem, num longa-metragem, onze filmes de onze minutos cada, retratando visões diferentes sobre os atentados sofridos em Nova York um ano antes. A pequena repercussão de meu texto anterior, no entanto, me fez chegar ao trecho filmado pelo britânico Ken Loach, no qual um chileno, em uma carta aos familiares das vítimas nova-iorquinas, diz o que o dia 11 de setembro representa para ele.

Digo pequena repercussão porque foi mesmo pequena. A contagem de acessos a meu blog teve certo aumento nos últimos dez dias, mas tive apenas um comentário registrado no site e outro, também positivo, que recebi por e-mail. Posso debitar um pouco disso à crônica e lamentável falta de interesse, mas decerto faltou coragem para uns e outros – tanto para concordar quanto para discordar de mim.

E, quanto ao filme de Ken Loach: onze minutos definitivos. Lágrimas brotaram-me. O quadro foi muito pior do que eu havia apresentado no texto anterior. As ameaças de invasão que eu imaginava eram, na realidade, bombardeios ao palácio do governo chileno, do qual Allende se recusou a fugir. Torturas. Assassinatos. Treinamento de militares pela CIA. Bloqueio econômico. Nesse 11 de setembro, o de 1973, eu tinha apenas 6 anos e, mesmo que tivesse discernimento, os meios de comunicação brasileiros ainda permaneceriam censurados pelos governos militares até que eu tivesse 18.

Quanto mais eu aprendo sobre a América Latina, mais certeza tenho de que a queda das Torres Gêmeas foi um espetáculo lindo, o mais próximo que a realidade já chegou de um filme de Roland Emmerich. E de que aquela casa caiada de branco, à avenida Pensilvânia, 1600, em Washington, D.C., nada mais é que o sepulcro da liberdade mundial.

11.9.10

A fábrica da liberdade e os onzes de setembro


Mais um ano e o 11 de setembro – pelo menos o 11 de setembro que os jornais ainda recordam – completa uma década. Para variar, a data foi cercada de polêmicas, envolvendo a queima de Alcorões e a proibição de instalação de uma mesquita próximo ao local onde ficava o World Trade Center. Mas afinal, os Estados Unidos não são a terra, a fábrica da liberdade?

Ah, a liberdade. As discussões políticas e as relações com pessoas ditas “libertárias” e “democráticas” trouxeram-me desencanto com essa palavra. A liberdade cada vez mais me parece um bem finito, como a quantidade de energia, a água e o oxigênio, e que não pode ser fabricado. Para que alguém a obtenha além de certo limite, de outro ela precisa ser tirada. Assim, é permitido ser muçulmano em Nova York; mas rezar para a Meca perto do Ponto Zero, não. É-se livre para entrar nos Estados Unidos; mas quem levar xampu na bolsa corre o sério risco de ser confundido com um terrorista da Al-Qaeda de carteirinha.

Então, repito, os Estados Unidos são a terra da liberdade? São a terra do medo, do dinheiro, do desperdício, mas são também a terra dos donos da liberdade, daqueles que estipulam quem tem a liberdade de fazer o quê. Inclusive a liberdade de contar a história. Tanto que 11 de setembro tornou-se, para as Torres Gêmeas, o que as Havaianas passaram a ser para o chinelo de dedo. Poucos lembram o 11 de setembro de 1973, data do golpe de estado, no Chile, comandado por Augusto Pinochet, que culminou com a morte do presidente socialista Salvador Allende e o início de dezessete anos de ditadura. Por que ninguém mais lembra esse 11 de setembro? Será porque o golpe de estado foi ordenado pelo governo dos Estados Unidos, sob pena de invasão norte-americana? Ainda estou na dúvida. O então presidente Gerald Ford, na ocasião, afirmou que os fatos ocorridos no Chile foram “no melhor dos interesses do povo chileno e, certamente, nos nossos melhores interesses”. Obrigado, senhor presidente, por ter nos dado a liberdade de sabê-lo.

Por isso o estardalhaço do 11 de setembro (agora falo do 11 de setembro verdadeiro, aquele ocorrido em Nova York) nunca me desceu direito. Não fiquei muito tempo nas linhas dos que defendiam a idéia de um atentado perpretado pelo próprio governo norte-americano, mas não tenho dúvidas de que a derrubada do World Trade Center era tudo de que George W. Bush precisava para levar adiante seus planos de governo, incluindo um kit de reeleição totalmente grátis. Quem assistiu ao filme “Fahrenheit 11 de Setembro”, de Michael Moore, viu a cena em que Bush recebeu de um assessor a notícia dos atentados; tal era a naturalidade do presidente que parecia ter ouvido do funcionário: “Senhor, a operação deu certo”.

E não deixo de lamentar as vidas humanas perdidas, mas sempre achei o atentado às Torres Gêmeas, em termos de ousadia, organização e precisão, um ato de gênio. É muito mais difícil acertar um jato comercial contra um edifício específico do que jogar uma bomba atômica sobre uma cidade japonesa. E menos covarde, pois os integrantes da Al-Qaeda que ocuparam os aviões usados nos atentados não puderam retornar à base.

Volto, então, à liberdade de se contar a história. Os muçulmanos que planejaram e realizaram os ataques de 11 de setembro de 2001, liderados por Osama Bin Laden, foram considerados terroristas e caçados mundo afora, justificando a invasão do Afeganistão e do Iraque. Por que, então, as bombas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945, por ordem do presidente dos EUA Harry Truman, não são consideradas um genocídio, que dirá um atentado? Uma desproporção. Nos ataques em solo norte-americano, morreram 2.993 pessoas, incluindo os 19 ditos terroristas – e a muitos foi dada a chance de fugir. Essa oportunidade não existiu para as 220 mil pessoas que foram evaporadas em segundos em Hiroshima e Nagasaki – às quais se somaram, com o passar dos anos, milhares de vítimas da radiação atômica.

É o medo de que algo semelhante aconteça em alguma cidade norte-americana que quer proibir o Irã de enriquecer urânio. Somente os Estados Unidos e seus amigos de confiança têm a permissão de efetuar destruições em massa. Qualquer outro, por menor que seja a suspeita, é, como foi visto no Iraque, em 2003, invadido, destruído e expropriado da liberdade de controlar seu bem natural mais valioso – no caso, o petróleo.

O que pensar, diante de tantos ataques à liberdade, à verdade? Que o ideal seria a inexistência de preconceitos, de medos, de ódios – e que os Estados Unidos deixassem de se considerar as maiores vítimas da história. Se existe exagero e intolerância nas idéias de ambas as culturas, a muçulmana e a judaico-cristã, existe também uma desproporção brutal de forças e de reações. Assim como a liberdade que os governos norte-americanos querem apregoar, a paciência e a ignorância do ser humano são bens limitados.

2.7.10

Deus e o Diabo na terra do gol

Nunca entendi direito, em Copa do Mundo, a torcida que o brasileiro faz para os times mais fracos. Comungo a idéia daqueles que gostam de ver o sucesso de seleções sem tradição, como sempre acontece quando uma equipe africana passa para as oitavas de final – mas pela mudança, pela diferença. Não compreendo meus conterrâneos torcendo pela Eslováquia contra a Itália ou pela Suíça contra a Espanha somente para facilitar o caminho para o Brasil mais adiante.

Sem desmerecer uma ou outra seleção, contra quem teria mais valor o Brasil decidir uma Copa? Contra a Suíça ou contra a Espanha? Aqui, no país da vantagem e do jeitinho, quanto mais fácil melhor. Ao chegarmos à África do Sul, desfiamos as dificuldades de jogar contra a Coréia do Norte e a Costa do Marfim como que para ocultar outro fato, bem mais real: não tínhamos condição de passar por uma equipe mais forte, como a Holanda.

Nem bem tinha terminado o jogo contra o famoso time de laranja e, além do técnico Dunga, cuja carta já estava marcada pela TV Globo desde o início da Copa, um Cristo já havia sido escolhido para ser crucificado pelos pecados da Seleção Brasileira, de Dunga e da CBF. Como se o gol contra não bastasse, Felipe Mello ainda recebeu um cartão vermelho. Mas é exagero condená-lo sozinho. Bastou ver o comportamento em campo dos incensados Kaká e Robinho, após o segundo gol holandês, para vermos que não nos acostumamos, ainda, à dificuldade, à derrota.

Nem sempre é possível jogar bonito, e o atual futebol, enlatado pela tecnologia que tudo vê e pela globalização que tudo compra, padronizou esquemas táticos, equilibrou resultados, e cada vez mais a postura psicológica de uma equipe determina o resultado em campo. É fundamental, claro, a segurança de um Júlio César no gol, a força e a integridade de um capitão como Lúcio, a manha e a categoria de um Robinho no ataque. Entretanto, jogadores, equipe técnica, imprensa, torcida – os tão falados 190 milhões de treinadores da Seleção Brasileira, enfim – deviam perceber que um time de futebol não é composto de deuses nem de diabos, mas de homens. Assim, sem sabermos ganhar nem perder, continuaremos empatando.

21.3.10

Poros desobstruídos

É noite em Santa Vitória do Palmar. A Lua, mesmo crescente, permite que se vejam as estrelas, artigo escasso onde moro. Uma frente fria havia entrado na véspera para todos os gaúchos, mas quem conhece aquela tripa de terra de duzentos quilômetros, isolada entre o Atlântico e a Lagoa Mirim, sabe que o vento nos Campos Neutrais é diferente de qualquer outro.

Uma brisa noturna a 16 graus centígrados, talvez menos, em pleno verão. De manga curta e bermuda, e o casaco em casa, a sete horas de ônibus, mas faço pouco caso. Aquele suave e delicioso vento quase frio não era tudo, mas era uma das coisas que eu mais queria, após experimentar o ar parado a 43,3 graus sobre Porto Alegre em 3 de fevereiro. Nem Cuiabá, nem o Rio, nem Timbuctu, no Saara. Naquele dia minha cidade havia sido o ponto mais quente da Terra, segundo a página da Accuweather.

E eis que as temperaturas mais, digamos, civilizadas me devolveram o direito não só à transpiração, mas também à inspiração. Que neurônios podem criar derretidos pelo calor? Era como se a palavra, que costuma usar a boca, a caneta ou os dedos, precisasse de poros desobstruídos para não sucumbir. E ela começa a surgir, devagar, no toque do vento sulino; no afresco de Andrea Pozzo que levei em 2 mil peças para montar em Santa Vitória; no silêncio e no cheiro de campo e de tempo de um hotel fazenda em São Lourenço, com seus móveis seculares e suas paredes de 90 centímetros de espessura; no retrato de Dorian Gray, que tive o prazer de conhecer; nas nuvens escuras que, de súbito, se abrem sobre o mar catarinense para, sabe-se lá, frustrar os meteorologistas ou confirmar que valeu a viagem.

Por isso costumamos juntar às férias o adjetivo merecidas. Para que o frescor do vento, do ar aberto varra o lixo que entope os poros da mente e o dolce far (quasi) niente, de maneira sutil, abra espaço, em nosso âmago, àquilo que realmente importa e que o mundo nos manda deixar em segundo plano.


É noite em Santa Vitória do Palmar. E o rosto sereno da brisa noturna, enquanto tantos dormiam, fez acordar uma palavra perdida.