5.12.07

Ão, ão, ão...

Futebol não está entre meus temas favoritos, mas não pude deixar de, como dizem os repórteres esportivos do rádio, “repercutir” a queda do Corinthians para a segunda divisão. Em um campeonato morno, cujo campeão já estava escolhido havia meses, o rebaixamento do Timão (sic) foi a grande notícia – que o digam jornais e emissoras de rádio e TV – e, também, a mais grata surpresa.

Unanimidades nunca me agradaram muito, especialmente as propaladas pela mídia. Há muito tempo viro a cara para Flamengo e Corinthians e, à medida que se escancarava a condição desses dois de queridinhos da Globo (Vasco e São Paulo também têm a simpatia da emissora dos Marinho), a aversão aumentava. A gota d’água foi o Campeonato Brasileiro de 2005. Lembram? Cinco dias após o Internacional tirar do eixo Rio-São Paulo a liderança da competição, a revista Veja denunciou o escândalo das arbitragens de Edílson Pereira de Carvalho, onze partidas restaram anuladas, e o tapetão, habilmente puxado, deu o título ao “Timão”.

Se o que se quer é lisura no futebol, que ela valha para todos, inclusive os grandes. Inter, Grêmio, Fluminense e Botafogo já provaram o sabor da segunda divisão. Sabem como é jogar com menos dinheiro, menos partidas televisionadas e maiores distâncias entre estádios. Pela TV Globo, o Corinthians já estava lamentando os 2.400 quilômetros que separam São Paulo e Fortaleza. Será que causaram algum compadecimento os 3.200 quilômetros que América, Inter e Grêmio tiveram de percorrer entre Natal e Porto Alegre?

É constrangedora a histórica diferença de tratamento entre as equipes. Os clubes fluminenses e paulistas que fazem parte do Clube dos 13 recebem maiores fatias do total de verbas distribuídas. Além disso, para que o público gaúcho pudesse assistir a um jogo do Inter ou do Grêmio pela televisão, era necessário que fosse contra Flamengo, Corinthians ou São Paulo. Manobra pouco inteligente, pois era um convite para trocar de canal ou desligar o aparelho.

Que digam, como sugeriu o presidente do Corinthians, que o Inter se deixou vencer pelo Goiás domingo passado e, assim, mandar o time paulista para a Segundona. Teorias da conspiração à parte, bastava ao time do Parque São Jorge vencer o Grêmio, o que não conseguiu, sacramentando a justiça do rebaixamento. A sensação de vitória contra a hegemonia foi tal que gremistas e colorados se irmanaram na torcida anticorintiana. E, de minha parte, por todos esses motivos, nunca fiquei tão feliz com uma derrota do meu clube, o Internacional. É bom, de vez em quando, ver uma mudança.

20.11.07

Versos antigos

Sintonia
(escrita em 1987)

Sou o lugar onde estou
E até isso me querem tirar:
Ligo energia,
Entro em sintonia;
Desligo e saio do ar.
O homem nunca esteve
Nesta terra indomável
Domada por tele-apatia
Que um dia não mais seria;
Seria controlável.

* * *


Voa
(escrita em 1988)

Voa:
Vou à toa
Rever ao relento
A quem se quer
E quem sequer
Tem o tempo que sobra,
Sopra só pra ver o vento
Que voa?

* * *

Um pouco da alegria
(escrita em 1988)

É sereno que penso num pouso à luz
E é paciente que espero da sina o fim.
E é de novo que vejo só o mar, só o mar...
Por que é de novo que perco?
Por que o dia acabou
Se é ainda alegre que busco

Um pouco da alegria?

2.11.07

O anjo e o sonho


Aos olhos pregados no escuro
A cor deste sonho destoa:
Meus passos pedindo futuro
A um anjo calado que voa.

Silente ele escapa ao afago
Da mão que eu havia estendido
Deixando em seu rastro um lago
Espelho de amores cuspidos.

Enquanto à tona eu estive
O anjo me fez poderoso
Jurei-lhe: “Por ti é que vivem
Meu dia e também meu repouso”.

O anjo calou, todavia,
Por raiva, orgulho ou medo
E o sonho então submergia
Ao peso de inútil segredo.

E assim em seu vôo prossegue
O anjo da alma imprecisa
Os sonhos que hoje ele ergue
Em fuga amanhã ele pisa.

29.10.07

Um coração

O acaso não nos fez parentes ou amigos. Apenas lados opostos na rotina diária no foro. Mas, nas vezes em que o encontrei, nenhum dia pareceu lhe valer um sorriso, chamando minha atenção e a de quantos com quem falei. Preocupação, seriedade constante, um vago tédio. O que guarda um coração assim? Tristezas, rancores, amores? Uma frustração antiga, uma carreira mal escolhida? A juventude ainda lhe dava tempo para um recomeço se fosse o caso, pensei.

Mas não foi, soube esta semana. O coração dele parou de bater, levando junto o que nele estivesse guardado. Morte súbita aos 35 anos. Um rapaz. Triste e chocante notícia, apesar de conhecê-lo só de vista. Meus pais já viveram mais que duas dessas vidas. Eu, nessa idade, nem era pai, nem havia redescoberto o cinema. Há vidas que terminam antes de começar.

Mesmo desconhecendo a história dele, pergunto: o que fica? De que vale guardar frustrações, economizar sorrisos e acumular preocupações se é para tudo virar pó hoje ou amanhã? O que pensamos não acontecer acontece. E, pergunto de novo, o que fica? Uma lição para os sobreviventes, quem sabe. De que, se é inevitável na vida um pouco de fel, que este não predomine. Se a vida é apenas uma expectativa, o amanhã não passa de possibilidade, e melhor seria se jogássemos o rancor, a amargura, a dúvida às nossas costas, em vez de deixá-los à nossa frente, esperando que caiamos num buraco por nós mesmos cavado.

1.10.07

Curtas

Vejo em notícia no Yahoo! que o governador do Distrito Federal resolveu “demitir” o gerúndio da administração pública da capital. Uso impróprio do verbo à parte, talvez a idéia seja impedir que se diga, repetidamente, que o governo está fazendo isto ou vai estar fazendo aquilo. Mas pode significar uma ordem para que, no final das contas, ninguém esteja fazendo nada.

* * *

Duas derrotas do Colorado em Gre-Nais, e dê-lhe Deuter para suportar tranqüilo a flauta do velho rival da camisa azul. Depois, cedemos em dois minutos um empate em 2x2 com o Atlético Mineiro – no dia seguinte, a trilha que eu ouvia era Enya. E nem adiantou jogar melhor, domingo passado, se o adversário era o São Paulo, campeão escolhido pela Globo muito antes do fim do primeiro turno. O Inter acabou perdendo de 2x1, de virada, e com a ajuda da arbitragem. E meu estoque de música new age está terminando...

* * *

Deu na televisão esta noite: o senador sergipano Almeida Lima, um dos mais fortes aliados de Renan Calheiros, será o relator de dois processos contra o presidente do Senado. Tudo para apressar a absolvição de Renan – e a entrega da pizza, que não pode esfriar. E a escolha do relator foi feita pelo presidente do Conselho de Ética! Ainda bem! Logo, logo, teremos esquecido toda essa história. Aliás, do que eu estava falando, mesmo?

16.9.07

A vitória da democracia (sic)

Quando, em 1989, eu votei para presidente pela primeira vez, o termo “democracia” ainda fazia algum sentido. Finalmente, após vinte e cinco anos, ter o direito de escolher os governantes. Mas, depois de conquistada a democracia, essa palavra, de tão desrespeitada, tornou-se persona non grata em meu dicionário. Elle foi a primeira cria daquele antigo ideal, e isso foi apenas o começo.

Ao mesmo tempo, a vida adulta me amadurecia politicamente, e aos poucos eu descobria significados novos para palavras velhas. Democracia passou a significar intervenção, quando não ocupação, pelos EUA, de países do Terceiro Mundo; ou a defesa de interesses de uma classe ou nação sobre todos os outros. Roubo, corrupção, desfaçatez, fisiologismo, nepotismo – todos camuflados pelo azeitado discurso de políticos eleitos pelo voto popular.

Minha antiga palavra de ordem torturou-me de novo, dita, quarta-feira passada, por um sorridente senador que comemorava a manutenção de seu mandato: “O resultado da votação é uma vitória da democracia”, disse Renan Calheiros, absolvido por 40 de seus colegas das acusações de quebra de decoro parlamentar. Mas qual democracia? Quem do povo votou ou presenciou a votação, se até deputados federais precisaram de liminares na Justiça para poder entrar no plenário do Senado?

Antes mesmo de começar a democrática sessão secreta, entretanto, eu já sentia a indiferença quanto ao resultado. Vi nos jornais, na rua, faixas, passeatas, protestos contra a corrupção, contra Renan Calheiros. Mas o que mudaria se o resultado fosse outro? Sem querer defender o presidente do Senado, a perda do mandato serviria de exemplo aos outros políticos? Saúde, segurança, educação, distribuição de renda, respeito aos direitos da população seriam mais levados em conta? A CPMF acabaria? Duvido.

Em algumas coisas meu predominante otimismo teima em esbarrar, e a cultura, no Brasil, de um Estado a serviço das oligarquias, de um Estado teta para quem conseguir mamar, é uma delas. Por “vitória da democracia” devemos entender vitória do próprio Renan Calheiros, que, afinal, foi escolhido por todos nós para ser processado acima dos rigores da lei, fosse qual fosse seu crime; vitória dos 40 senadores que nele votaram, pois, segundo notícia publicada pelo Estadão, gratidão não deve faltar; vitória de Mônica Veloso, ex-amante do senador, que saltou para a fama e estará nas páginas de Playboy. Talvez, no futuro, tenha descoberto seu talento como atriz de novela ou apresentadora de TV.

Esses são os vitoriosos, essa é a democracia que venceu quarta-feira passada. Não a democracia como imaginei, ou como me foi ensinada, e que, se um dia existiu, foi modificada nos gabinetes enquanto era preparado o fim do regime militar. A democracia que vejo hoje em meu país não me serve.

9.9.07

A vida secreta das palavras


Tão raras têm sido minhas idas ao cinema que me vi perdido ontem, ao buscar um entre os 40 títulos na programação. Para quem trazia intocadas na mente as imagens do nada convencional “O livro de cabeceira”, de Peter Greenaway, assistido em junho, a escolha se tornava ainda mais difícil. Decidi então confiar apenas no palpite que uma ficha técnica me assoprava.

A origem espanhola do filme, por si só, não queria dizer muito, mas o engajado Tim Robbins, um de meus atores favoritos, não cometeria um deslize logo depois de ter filmado “A guerra dos mundos” de Spielberg. Além disso, foi em frente aos cartazes que descobri o dedo dos irmãos Almodóvar, Agustín e Pedro, na produção executiva. E o título do filme parecia, o tempo todo, mexer com vara curta com um de meus motes favoritos – o silêncio. Assim resolvi conferir “A vida secreta das palavras”, da catalã Isabel Coixet.

A escolha não poderia ter sido mais feliz. Josef (Tim Robbins) se recupera das queimaduras e da perda da visão causadas por um acidente na plataforma petrolífera em que trabalha, e a enfermeira Hanna, vivida por Sarah Polley, é contratada para atendê-lo. Josef é curioso, falador, e Hanna, introspectiva, é quase surda. As luzes oblíquas do filme, adequadas aos mares da Irlanda, onde se passa a história, e os pouquíssimos funcionários que restam na plataforma desativada ressaltam o ar de solidão e o diálogo aparentemente impossível que vivem o petroleiro cego e a enfermeira surda.

O maior valor deste drama, a um só tempo delicado e contundente, é mostrar aos poucos como Hanna e Josef se permitem dialogar – e, principalmente, por que o silêncio é escolhido por tantas pessoas, as palavras secretamente ganhando vida e esperando o momento exato de serem ditas. A descoberta gradual dos dois personagens permite também ao público encontrar no filme de Isabel Coixet uma dimensão insuspeitada, incabível neste comentário, mas que explica também o caráter indie da obra da catalã. Lançado nos Estados Unidos em apenas uma sala, rendeu na “terra do cinema” míseros 20 mil dólares, enquanto, no resto do mundo, arrecadava 5 milhões de dólares. Prova de que o bom cinema independente tem vida própria, como as palavras que Josef e Hanna teimavam em ocultar.

Foto: http://www.rottentomatoes.com/m/secret_life_of_words/gallery.php?page=2&size=hires&nopop=1; Strand Releasing

28.8.07

A primeira viagem


“Se fazer cinema é loucura, fazer animação é cretinice.”

A frase, escrita a giz nas costas de um quadro-negro já vão dezesseis anos, ainda está lá, conservada pela superfície áspera que a recebeu. O tom debochado da frase também é uma ironia, já que serviu de “moral da história” para um filme de animação no qual tomei parte. Nessa empreitada também estavam André Grassi e Leandro Steiw, então colegas de Jornalismo e grandes amigos meus até hoje. Essa foi minha primeira experiência com cinema... uma “brincadeira” em super-8 que custou longas tardes desenhando bonequinhos e cenários sobre papel vegetal e fotografando-os quadro a quadro, mais uns seis meses esperando que os rolos voltassem da França, pois no Brasil nenhum laboratório mais fazia a revelação da bitola.

Fazer cinema, então, não é uma loucura?

Talvez não a loucura dos que perderam a razão, e sim a razão de ser de alguns tidos como loucos. Cinema é um empreendimento complicado, demorado, de risco – e ainda caro, mesmo com a diminuição de custos pela tecnologia digital. Os telefones celulares acenam de novo com a possibilidade de se fazer cinema com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, mas, quanto mais público quisermos para o filme, maior a estrutura necessária. Filme feito em celular não leva Oscar, Palma de Ouro ou Kikito. Pelo menos por enquanto.

Apesar disso tudo, o lado aparentemente desarrazoado dessa loucura parece indispensável na carreira de um diretor. Cinema também é criatividade, improviso, maleabilidade. Cineasta tem que ser meio McGyver. Se ele esperar uma grua ou um dolly à disposição para começar, talvez não comece nunca. Houvesse muita ponderação ou “crises de realidade” e eu não teria escrito, filmado e apresentado publicamente, quinta-feira passada, “Café cortado”, meu primeiro curta-metragem.

Digo eu, mas o mérito é de cada participante dessa experiência de fazer cinema. Se por um lado dispusemos de profissionais na fotografia, na edição e em cena, além de uma boa câmera e bons programas de edição, por outro foi necessário pensar no filme como um fim e não como um meio, improvisar o tempo todo e, acima de tudo, aprender fazendo e errando. Se cinema já é uma pressão, imagine saber que só haverá uma oportunidade para usar a locação. Na hora algumas soluções aparecem, como um extensor de vassoura para servir de haste para o microfone boom – ou papel vegetal forrando o balcão de vidro para eliminar reflexos. Mas alguns erros são descobertos apenas na edição, quando já é tarde demais.

Quinze meses produzindo um filme de três minutos e meio. O que se ganhou com essa loucura? Fama, dinheiro? Não, vontade de fazer mais. De consertar os erros, de mostrar que se aprendeu alguma coisa e de, a cada produção, romper uma nova barreira. Cinema é um esporte radical. Está para as fotos de férias como o surfe está para a planonda. O desafio que ele faz à nossa liberdade é irresistível.


Posso não conseguir filmar as idéias que tenho para roteiros, posso, ainda, encarar o ação e o corta como mero hobby. Entretanto, não era o que sentia tendo ao meu lado, quinta-feira passada, a equipe do “Café cortado”, o brilho nos olhos de cada um apenas dizendo “nós conseguimos”. Apenas um pequeno passo, mas o primeiro, como o de toda viagem. Uma louca e, para os que amam o cinema, indispensável primeira viagem.

(Na foto: Lúcia Azevedo [diretora de produção], Nádia Prestes [editora], Cláudia Elisabeth Ramos [assistente de direção], Patricia Suri [atriz], Tito Ravaglia [ator], Fernando Telles [desenhista de produção] e Renato Wolff [diretor]. Foto: André Grassi)

3.8.07

Depois

Uma porta se fecha. O vento muda de direção, uma amizade se precipita sobre si mesma – e assim, no más, as pessoas passam. Tão inexplicável quanto a vitória da vida (ou a da morte), e ainda mais imprevisível, é o mecanismo da amizade. Afeição, empatia, amor tantas vezes, trocam-se por milhares de quilômetros, bastando apenas uma linha telefônica e um quebra-cabeça que o imaginário monta com peças lidas, vistas e ouvidas, mas nunca tocadas. Um jogo flexível nas regras e inquebrantável nos princípios, em que os contendores se respeitam em seus tabuleiros de tempo e espaço.

Outros mecanismos subitamente falham, contudo, mesmo a uma distância de poucos quilômetros ou até de poucas quadras. O tempo que confirma por que o coração ainda sorri ao ver aquele amigo de infância – esse mesmo tempo mostra como aquele outro amigo na verdade era. Tornamo-nos então exigentes e passamos às vezes por intransigentes, insensíveis, mesquinhos. Não foi aquela dívida que desfez uma amizade de 15 anos; foi a falta de lealdade. Nem foi birra gratuita que afastou outra amiga de há tempos; foi a falsidade, o descaso.


Dia desses, passei por um afastamento anunciado. Uma excelente parceria para tantos assuntos e visões do mundo, mas recentes estremecimentos mostravam contendores com tabuleiros de tempo assaz diferentes. Então, a amiga de cabelos negros, palavras azuis e dias infelizmente opacos decidiu calar-se. Tornará a falar? Quando? É impossível ficar indiferente. Mas aprendi mais um pouco sobre esse delicado e às vezes imprevisível mecanismo, mesmo depois de vê-lo falhar. Que, como na vida e na morte, estamos sozinhos com nossos valores quando não somos compreendidos. Ninguém no mundo sabe o tamanho exato de uma decepção.

26.7.07

200

Passados nove dias, a tragédia do vôo JJ 3054 em Congonhas ainda domina os noticiários e as conversas. O post que escrevi logo abaixo, algumas horas após o acidente, quem diria, teve quatro comentários, marca invejável para este modesto blog. Coincidência ou não, dois deles vieram da Grande São Paulo e outros dois de Porto Alegre. Cada um deles contribuiu para que eu voltasse ao assunto – e mostrando, cada um a seu jeito, a perplexidade causada pelos fatos da terça-feira, 17 de julho.

Para o estilo sucinto da Katia, duas palavras sintetizaram o sentimento: triste e preocupante. A Maristela preferiu uma metáfora... quem dera fossem apenas gatos num novelo de lã! E o dinheiro gasto no Pan não é o problema, mas concordo com a Camila no que toca ao amadurecimento das instituições. Por fim, o Sean só confirmou o que eu havia comentado no blog da Márcia Benetti: tivesse eu esperado mais algumas horas para escrever e meu texto já seria bem diferente.

A emoção do primeiro momento fez ecoar nas palavras uma indignação que vinha desde a queda do jato da Gol, que desencadeou a chamada “crise do setor aéreo”. Não estou culpando governo, TAM, pista do aeroporto ou quem quer que seja pelo desastre. Deus queira que eu nunca seja chamado de especialista em qualquer coisa. Mas o governo federal ficou omisso durante dez meses, jogando a culpa aos céus, e o preço por enquanto foram 200 vidas.

Um amigo meu, que tem curso de pilotagem, está indignado com a cobertura dada pela imprensa: aquelas ranhuras que ajudam a drenagem da pista, o tal de grooving, não impediriam o acidente. Nem o reverso seria obrigatoriamente a causa. E por que, pergunta-me ele, tanto espalhafato se muito mais gente continua morrendo nas estradas?

Não, o avião não deixou de ser o meio de transporte mais seguro. Mas nunca vi um acidente rodoviário matar, sozinho, 200 pessoas. E também 200 famílias morreram um pouco em fração de segundo. Jornais, TV e Internet exageram na dose, confundem às vezes, manipulam sempre – a Globo, por exemplo, parece empenhada em desacreditar o aeroporto de Congonhas –, mas a comoção nacional e a necessidade de respostas são inegáveis. Houve problema no reverso, houve derrapagem? A velocidade do avião era alta ou baixa? Até ontem, eu achava que o piloto havia tentado arremeter, não sei mais. Isso sem contar a balbúrdia que se tornaram nossos aeroportos.

Cada um tem sua temperatura de sangue, esta é a minha. Na quarta-feira passada, era um choque ver, na rua, bandeiras a meio pau, em luto pelas vítimas do acidente. O tempo vai aparando as arestas, mas ainda estou perplexo com os fatos e irritado com a inatitude, que tem sido, com a corrupção e a desfaçatez, um dos grandes males deste país. Por duro que seja dizer, talvez tenham sido necessárias as 200 mortes de Congonhas para que alguma coisa aconteça.

18.7.07

Outro

Bombeiros trabalham no local do acidente que ocorreu durante o pouso de um Airbus da TAM causando uma explosão no terminal da companhia no Aeroporto de Congonhas, na zona sul de São Paulo, na noite desta terça-feira.

Se o envolvimento de pilotos norte-americanos no acidente do Boeing da Gol, em setembro passado, nutria inclusive teorias da conspiração imperialista, o governo federal não precisa mais ter dúvidas: existe, sim, presidente Lula, um caos no sistema aéreo nacional, e todos têm culpa. Apontar a chuva ou o desenvolvimento do país como responsáveis pelos apagões aéreos é cinismo. Lula queria dia e hora para a solução, e reformar o aeroporto de Congonhas na pressa provou não resolver nada, muito pelo contrário.

A pista do aeroporto mais movimentado do país, engolida pela capital paulista, foi maquiada com asfalto novo e uma drenagem insuficiente, como a TV Bandeirantes informou poucos momentos após o acidente com o Airbus da TAM, ontem à noite. Como se não bastassem as balas perdidas, agora os moradores das imediações dos aeroportos correm o risco de serem atingidos por aviões perdidos. Quantas mortes serão ainda necessárias para acabar o faz-de-conta?


(foto: www.br.noticias.yahoo.com, Agência Estado)

9.7.07

Mittjahr

“Mudaram as estações
Nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente...”


... e foi ao meio-dia da segunda passada. Foi quando o tempo, alcançando a cumeeira de 2007, não viu caminho senão descer de novo, rumo ao ano que vem. Mero símbolo, num ponto mediano entre outros dois, não menos arbitrários, criados para marcar nossa existência e, quem sabe, reanimar algumas esperanças. Sim, segunda-feira, 2 de julho, ao meio-dia, foi o meio do ano. Conceito impreciso, que só o mais preciso dos idiomas, o alemão, para forjá-lo numa só palavra – Mittjahr – e só os elfos da Terra-Média para tê-lo no calendário, graças a seu pai, Tolkien.

Do alto dessa cumeeira, os dois lados dessa montanha de tempo me parecem muito diferentes. De tudo que 2007 propôs, como são os dias agora? Após décadas, meus pais, deixando uma casa que representa metade de suas vidas, em nome de mais conforto e segurança. Tantos amigos aperfeiçoando-se, conhecendo lugares, produzindo ou adquirindo conhecimentos. Outra amiga, que não se diz capaz de mudar uma situação insustentável, mas que, aos poucos, prepara o vôo para a liberdade. Enquanto isso, em outros ares, nuvens regam fora de época um belo jardim de gardênias.

Visto de perto, entretanto, o tempo nem parece deixar rastro, eis que mal se percebe quando os vales luxuriantes se tornaram a vegetação rasteira do cume. Viradas na vida parecem acontecer só com os outros. Quantos planos foram realizados – ou as “resoluções do Ano Novo” eram um eufemismo para “vou empurrar com a barriga para o ano que vem”? Alguma atitude foi tomada, algum comportamento deixado de lado? O que sei hoje que já não soubesse em dezembro passado? Nem meu ventre roliço me poupa. Olho para ele e pergunto: o que afinal os egoístas vêem no próprio umbigo?

Já vivi meios do ano incríveis. Foi num 2 de julho que saí de casa para morar sozinho... Mas alguém fala do Mittjahr com alegria? Ninguém lembra que o ano já passou da metade sem denunciar um ar de desalento. E, ironicamente, a cada virada, damos um pé na bunda do ano que acabou e lavamos as mãos das resoluções assumidas e não cumpridas. A culpada, talvez, seja nossa natureza insatisfeita, aquela mesma que joga tinta verde na grama do vizinho. Que seria melhor? Voar um pouco mais alto e ter uma visão mais distante e realista ou centrar-nos em nós mesmos, dando asas aos sonhos e assumindo o risco da frustração? Uma interessante questão para os (quase) seis meses que restam a 2007.

23.6.07

Luísa e eu

Serenos, os olhos dela repousam enquanto os meus se descobrem de novo embevecidos, como em nosso primeiro encontro – e nem parece que isso se deu já há mais de um ano. Agora, que a idade de Luísa supera e muito o tempo que esperamos por ela, agora, dizia eu, é ela que espera por nós.

Dormindo, ela espera (mesmo sem ter noção disso) que, ao acordar, possa receber alimento, amor, conforto, lazer, estímulo – a atenção de que necessita. Em retribuição, vai nos mostrar alegria, vitalidade, crescimento, curiosidade – e, ao dormir, a mesma serenidade que vejo agora.

Luísa dorme sem desconfiar de todo o esforço que foi necessário para que ela estivesse neste mundo, neste texto. E é por isso que às vezes me pego embevecido: um pequeno protótipo de gente que, antes mesmo de engatinhar, já nos dava mostras de atenção, esperteza e encantamento com o universo que a rodeia e já reconhecia o próprio nome quando era chamada.

Vejo hoje que cada hora que se adiou o descanso ou o sono (a começar pela madrugada em claro que foram suas primeiras horas de vida) foi dada a Luísa, para que pudesse dormir assim, serena, e, de manhã, mostrar um sorriso que nada no mundo pode pagar. Vejo hoje que, embora não seja condição indispensável – eis que o amor paterno existe e é também incondicional –, enxergar-me em pequenos detalhes como o feitio dos dedos de Luísa ou em certas expressões de seu rosto reforça meu apego a ela e o sentimento de perenidade e de perfeição da ordem das coisas.


Os dias são diferentes desde que ela chegou – mais curtos uns, mais cansativos outros, mais tensos até. Mas dedico a Luísa estas linhas, pois têm sido dias também de aprendizado e de descoberta, inclusive de que, após seu nascimento, Luísa e eu, filha e pai, passaram a ser.

20.6.07

O público duplo

A não ser que alguém tenha chegado atrasado, eram duas as pessoas assistindo a “O homem duplo” (A scanner darkly), hoje à tarde na Casa de Cultura Mario Quintana. Quase sessão privativa, nunca havia visto um público tão pequeno. Muito não se podia esperar de um horário vespertino, em dia de semana, mas ainda assim é frustrante ver o público que resta para um filme inteligente, de qualidade – e, principalmente, que foge do mainstream cinematográfico.

Num futuro próximo, em que quase mais nada escapa à monitoração da polícia, Keanu Reeves é um agente que recebe a missão de investigar a si mesmo por causa do vício em uma poderosa droga, que altera a noção de realidade do usuário. Para recontar a surpreendente história escrita por Philip K. Dick (o mesmo autor das histórias de Blade Runner e Minority Report), o diretor Richard Linklater aplicou uma animação – denominada rotoscopia digital – sobre as imagens filmadas, criando uma atmosfera psicodélica e em constante e incômodo movimento.

Temas como drogas, criminalidade, auto-identidade, decadência da sociedade, poder das grandes empresas, controle da informação e da vida privada fazem de “O homem duplo” uma história muito mais real e atual do que a tecnologia fictícia do filme poderia sugerir. Mas, em tempos de Shrek e Piratas do Caribe, quem quer ver um filme sério e ainda com um visual perturbador? Revejo nos jornais que o filme de Linklater estreou em Porto Alegre no dia 8, praticamente junto com o lançamento nacional do DVD. Se mesmo a vida dos arrasa-quarteirão tem sido curta, alguma chance de que “O homem duplo” sobreviva a esta quinta-feira?

17.6.07

Carta

Um feliz encontro entre minha mãe e um de seus ex-alunos deu origem a um depoimento que Sean, o ex-aluno e hoje excelente amigo meu, fez público em seu blog. Agora reproduzo a carta que a professora Maria Silvina, minha mãe, escreveu em resposta ao depoimento.

Sean,

Eu não poderia te deixar sem resposta, uma vez que trouxeste à tona sentimentos que me acompanham há quatro décadas – a saudade de meus tempos de bibliotecária.

Como não sou versada em computação, faço do meu filho e teu amigo, Renato, o portador das minhas palavras em seu blog.

Desempenhei funções de professora bibliotecária durante vinte anos e o fiz convicta da minha missão – cativar o aluno para a leitura. Tenho consciência da minha dedicação e amor, posto que eu adorava o que fazia, mas nunca parei para pensar em como e quanto germinariam as sementes que eu plantava. Entretanto, tenho recebido, ao longo dos anos, alguns depoimentos que me fazem considerar o valor do meu trabalho e agradecer a Deus a inspiração e a força que Ele me deu. Esta mesma conduta tive com meus filhos, Renato e Rogério, que, nas palavras de uma professora amiga, eram verdadeiros “ratinhos de biblioteca”.

Sean, como foram significativos o teu abraço e as tuas palavras quando nos encontramos na festa de 1 ano da minha neta! E eu achando que nem te lembravas de mim!!! Tua atitude tocou profundamente o coração desta “taurina chorona”! Mas afirmo-te, com certeza absoluta, que a tua mãe – a incansável Farisa, que conheci como atuante dinâmica no Clube de Mães da nossa escola – foi a primeira e principal responsável por essa postura de reconhecimento e gratidão que hoje demonstras. Sensibilidade como a que possuis, reforça-me a crença de que o mundo ainda não se deteriorou.

Obrigada, meu querido Sean, pela alegria que me proporcionaste! Obrigada também aos teus amigos pelos comentários elogiosos!

Que bom que és amigo do meu filho!

Parabéns a tua mãe que te criou tão bem! O meu abraço a ela e um beijo para ti da professora amiga que te deseja muito sucesso na vida.

Maria Silvina

11.6.07

Memória cinematográfica

Numa tarde dessas, uma tia de minha mulher comenta que havia visto na TV um filme com Al Pacino – mas qual era mesmo o filme?, pergunta ela, agora não lembro. Radar acionado ao ouvir o nome de um dos meus atores favoritos, bastou ela dizer que Pacino fazia um detetive que ia para o Alasca para eu responder: deve ser “Insônia”.

Poucas vezes tenho a resposta assim na ponta da língua, mas dessa vez tive sorte no quiz a que a tia sem querer me submeteu, talvez por causa de uma piada. Quando “Insônia” estava nos cinemas e eu disse no trabalho que o cineasta (Christopher Nolan) era o mesmo de “Amnésia”, meu chefe disse que o filme seguinte do diretor deveria se chamar “Enxaqueca”.

Infâmias à parte, pequenas circunstâncias como essa abrem na memória lugar para uma informação. Esse mesmo “Insônia” foi um dos filmes que marcaram, em 2001, minha autodescoberta como cinéfilo (um pouco mais dessa história eu conto aqui). Mas já bem antes disso eu percebi que minha memória, traidora quando o assunto é diálogos, piadas ou decoreba, poderia fazer as pazes comigo em frente a uma tela de cinema.

Era 1995, e eu assistia ao made for Sessão da Tarde “Lancelot – O primeiro cavaleiro”. O herói era Richard Gere, e o rei Arthur, ninguém menos que Sean Connery. Mas onde diabos eu havia visto antes o príncipe Malagant, vilão da história? Essa pergunta me martelou até quase o final do filme, quando de repente, como se Charlton Heston houvesse erguido os braços em frente ao Mar Vermelho, minha memória encontro o caminho para a informação perdida: o vilão era Ben Cross, um obscuro ator inglês de TV que fez o papel principal em “Carruagens de fogo”, filme que adorei. Era ele mesmo, 14 anos mais velho, um pouco mais gordo e um bocado mais sujo, pois as justas não eram mais em uma raia olímpica.

Daí em diante, comecei a me divertir tentando encontrar, apenas pela fisionomia, aqueles artistas que, como não nasceram para ser Roberto DeNiro, Brad Pitt ou Angelina Jolie, ficavam esquecidos, perdidos no meio do elenco, muitas vezes injustamente. Assim reencontrei na tela velhos amigos, que eu via de vez em quando e nem notava.

No diretor de prisão em “À espera de um milagre”, reencontrei o mesmo James Cromwell que foi o fazendeiro de “Babe”. “Bom porco”, ele dizia. Na mortal e estonteante Gail de “Sin City”, estava Rosario Dawson, aquela menina morena de “Kids”. E, em “O senhor dos anéis”, o decrépito rei Théoden não me era estranho; pudera, cinco antes, vi Bernard Hill afundar dignamente com o navio em que era capitão – o “Titanic”, nenhum outro. Isso sem contar o meio-elfo Elrond, ao qual faltavam apenas o paletó e os óculos escuros, não é, mister Anderson?

Tudo cultura inútil? Não, pois passei a olhar de forma diferente para a tela. Além de abrir novos espaços em minha memória, reforço a certeza de que o cinema não é apenas meia dúzia de grandes astros. Mais inútil é saber com quem está Leonardo DiCaprio ou a última extravagância de Tom Cruise. O talento também pode estar naqueles coadjuvantes ou mesmo nos figurantes, que nunca receberam da indústria a oportunidade certa para fazer parte da memória cinematográfica e por isso permanecem esquecidos.

22.5.07

Ina(ni)ção

Aonde foi o blogueiro? Ele, dono de reino algum, resolveu seguir à risca o nome do blog? Saiu de férias de novo? Ou será que a fonte secou esperando abastecimento na remotíssima próxima viagem?

Nada disso, as idéias brotavam, mas não passavam de seus inícios em folhas perdidas aqui e ali e sufocavam, como que se acostumando a uma inércia vinda sabe-se lá de onde. Ao invés de as palavras inspirarem outras palavras, o blog quase se calou, autofágico. Silence like a cancer grows, já diria Paul Simon.

Enquanto isso, fora do papel, a vida continuava, trazendo fatos e sentimentos, ou seja, palavras possíveis. Uma parente querida que nos deixou, a obra do metrô em São Paulo, o 8 de março, o aniversário de Luísa, o Dia das Mães – a realidade pipocando o tempo todo, só para não me deixar esquecer (que o diga minha amiga Katia K.!) que cada minuto desta vida vale ao menos algumas linhas pelas mãos do artista.

23.4.07

Desterro


O Oceano Atlântico e o sol se pondo por trás da Serra Geral me pediram a foto acima – e me deram em troca uma pergunta: por que não morar aqui?

Como não bastam como pátria nem a cidade natal nem a mochila, a vida ancorada em um só porto por vezes parece desequilibrar o navio. E então vejo nalgum antigo desterro o verde, o mar e o concreto se unirem de tal forma que quase esqueço o local a que pertenço.

Quem dera todos os desterros fossem assim! Como os açorianos que vieram povoar a ilha, deixo o conforto pela surpresa a cada passo; o ar condicionado, a Internet e as poltronas do cinema dão lugar à brisa, à Via-Láctea e às avenidas à beira-mar, amplas o bastante para nos convencermos de que uma muralha de arranha-céus também pode ser bela.

O tempo parou para vermos, em quatro dias, como os ares de metrópole convivem com os de balneário do interior ou de uma velha cidade do Brasil Colônia, escondida pelos edifícios em vielas estreitas. Cidade cercada de praias por todos os lados, onde o inevitável desenvolvimento urbano já causa os transtornos das grandes capitais, mas de onde, em poucos minutos, posso derivar para o horizonte líquido ou uma trilha na mata.

Sim, essa paisagem compensa as chuvas freqüentes e a vida cultural ainda incipiente. Apenas a vida construída sobre alicerces mais profundos é que não me traz mais vezes à ilha. Os quatro dias, contudo, bastaram para eu reencontrar as energias e voltar disposto à realidade na terra natal. E, na noite antes de meu retorno a Porto Alegre, miro contente, uma vez mais, a paisagem da foto, agora pontilhada pelas luzes dos barcos, como a refletir na baía a luz das estrelas que velam o sono de Florianópolis.

30.3.07

A vida começa...

Bem, aqui estou de novo. Sempre voltando, sempre recomeçando. Os 43 dias entre o texto que se vê logo abaixo e o anterior puseram no chinelo as duas semanas a que eu havia me referido em fevereiro.

As férias não foram o único culpado, os últimos três ou quatro meses foram conturbados para a inspiração, que ia e vinha, apenas deixando inertes, misturadas num saco, algumas palavras em busca de uma continuação. Estranho final para um quadragésimo ano agitado, de descobertas e desilusões, de temores e vitórias, de passos e tropeços, de gente que chegou e gente que se foi.

Espero poder juntar, nos próximos textos, algumas dessas passagens, mesmo que pareçam caducas. Para a vida começar, é necessário reconciliar-me com esses momentos perdidos no baú, exprimi-los (ou será espremê-los?) e encontrar os momentos novos.

Sigamos em frente. Como uma amiga mesmo me disse, não é preciso temer.

20.3.07

Ventos de março

O ponteiro das horas já venceu bem mais que metade da curva da noite, mas o sono não me vence. Caem gotas de chuva no telhado, tão esparsas quanto têm sido minhas palavras. “Promessas de vida”? As ditas águas de março, nesta terra, pouco mais são do que promessas. Tanto que permitem que eu abra a janela e misture ao escuro do quarto a cor da madrugada.

Contudo, o ar é diferente. Agora ele se move e alivia o calor dos últimos meses. Higher wind, lower temperature, pois o trocadilho é impossível em português. Fecho então os olhos para que a mente se concentre apenas na brisa que anuncia minha estação favorita – e as palavras voltam a fluir.

* * *

Como pode tanta gente não gostar do vento? Há quem se ponha nervoso quando venta, há quem diga que até o trânsito fica mais confuso. Por quê? Hora de vento não deveria ser motivo para voltar para casa na pressa, e sim para apreciar na rua, com calma, o belo espetáculo da virada do tempo, de folhas revoltas no chão e cinzentos mutantes no céu.

Ele não é apenas uma fonte inesgotável de energia; o vento é pai de todas as figuras que enxergamos nas nuvens e também do doce acalanto do mar quebrando na praia. Mais do que o sol e a chuva, o vento transcende os sentidos, carregando mágoas e trazendo inspirações sem que ninguém o veja. Uma manifestação tátil do tempo: por isso, segundo Erico Veríssimo, sempre que acontecia algo importante, estava ventando...

E, no entanto, o vento sempre foi o primo pobre das intempéries. O sertanejo agradece aos santos pela chuva na roça, e a cidade se transfere para o litoral à cata de dois metros quadrados de sol na beira da praia. O vento costuma ser lembrado pela areia levantada, pelos cabelos em desalinho ou pelos papéis esparramados, como as folhas do trabalho de Winona Ryder em “Colcha de retalhos”.

Neste país em que os dias frios ficaram no passado, ainda se cultiva a idéia do encontro romântico num tapete, lareira acesa, janelas fechadas... por que não uma janela entreaberta e a agradável música da brisa nos cabelos e na pele? Mesmo com temperaturas amenas, enclausuramo-nos em ares viciados e individualistas e fugimos dessa parte da natureza que, felizmente, não corre risco de extinção.

Uns dias chove, outros dias bate sol, mas o que eu quero lhe dizer é que, para que um desses dois extremos aconteça, há sempre o vento. Ele é para o tempo como uma transição, uma meia-estação, o lusco-fusco, ou a expectativa de uma mudança em nossas vidas. É por isso que tanto me agrada chegar com Luísa à janela e vê-la sorrir cada vez que o vento lhe acaricia o rostinho.

5.2.07

Voltando

Talvez um que outro de meus dois ou três leitores nem tenha reparado, mas fiquei duas semanas fora do ar. Melhor dizendo, fora destes ares de Porto Alegre, pois fui procurar outros, por absolutamente necessário. Há muito que minha migração para o sul deixou de ser anual, colocando em risco a sobrevivência de minha espécie, que, como já disse aqui, não é deste mundo.

Não que eu tenha escapado da necessidade do celular ou das páginas da vida (???) exibida por Pedro Bial todas as noites de verão. Ah, a inevitável TV Osmose! Contudo, a estrada, após dois anos, era o caminho para que eu não fosse pavimentado pela rotina de trabalho, compromissos e poluição – e encontrasse lugares onde pudesse caminhar à noite, ouvir um galo cantar ou enxergar as estrelas – sim, elas ainda estão lá no céu!

Foram 1.200 quilômetros em 13 dias, nos quais ignorei completamente Internet, MSN e minha paixão pela sétima arte. No entanto, desconheci a palavra despertador, revi o saudoso mar (que enfim apresentei à minha filha), nele mergulhei relendo “Moby Dick”, e meu olhar pôde atravessar a rua pensando: “O Brasil é do lado de lá”. Apenas não tive muita oportunidade para praticar o espanhol que aprendi, pois en la ciudad de Chuy, nestes tempos de dólar em baixa, muitos dos funcionários das lojas nasceram do outro lado da rua y hablan Portugués muy bien.

Porém, mais valioso que tudo isso foi o reencontro com outra natureza – a minha própria, ou parte dela. E isso já se manifestava em agosto, quando, em meteórica (como de costume) visita a Bagé, prestigiei a festa do 80º aniversário de uma tia. Esperar dois anos para poder sair da cidade e desfrutar de duas horas com a família! O que traz tamanho apego àquelas dezenas de pessoas, algumas das quais mal conhecemos?

Não sejamos hipócritas, é claro que a afinidade varia muito; antipatizar não é crime, diferenças sempre existem, e talvez algumas amizades de ouro estejam ali escondidas, apenas não foram descobertas porque a disponibilidade de tempo e a distância entre as moradias foram grandezas inversamente proporcionais. Buscamos a família também devido a essa carência, que nunca será satisfeita.

Essa visão mais amarga me fez lembrar Zach Braff, quando, no filme “Tempo de voltar”, diz que família é “um grupo de pessoas que sentem falta do mesmo lugar imaginário”. Foi-se a época das longas visitas entre primos, do tempo livre para passear e brincar. E algumas nem eram tão longas; quando somos pequenos, o tempo parece maior, talvez por isso mesmo.

Mas, independentemente daqueles vínculos mais fortes, daquelas pessoas, digamos, “favoritas”, ainda vejo algum magnetismo nessa idéia chamada família. Se há espaço para a aparência, há também para a verdade. Já fui chamado de anti-social devido à timidez, mas, se fosse um misantropo, eu não viajaria 380 quilômetros para voltar na manhã seguinte. O tempo não permite mais que uma família se conheça como em outras épocas, mas ali há pessoas que eu verdadeiramente amo.

E na minha recente migração ao sul, da qual estou voltando, os melhores momentos eu passei com algumas dessas pessoas. Notando semelhanças, diferenças, manias, contradições, sensibilidades, pude ver peculiaridades que ainda não conhecia e confirmar as razões que há 30 anos eu mal percebia – e que me causavam nós na garganta nas despedidas. Isso é o que vale desses encontros. A certeza de que, dentre tantos lugares imaginários, ainda há portos seguros onde podemos ver alguma identidade, alguma verdade, e que não serão descobertos se passarmos sempre ao largo, deixando de aproveitar as já poucas oportunidades que o tempo nos dá.