9.10.05

O silêncio e eu

Tarde de final de outono, e procurei um refúgio entre as árvores do parque, afastado da agitação que deixa barulho em troca dos pensamentos roubados. Pouco a pouco, os ruídos na rua foram dando lugar a meus passos no caminho de areia. Foi ali, onde os motores haviam se tornado um burburinho longínquo, que eu o encontrei.
– Então ela não quis lhe dar ouvidos de novo, não foi? – disse uma voz.
– Já vem você de novo? – respondi, não conseguindo disfarçar alguma irritação. – Por que sempre aparece nessas horas?
– E você achou que fosse encontrar quem por aqui, neste mato? O Coelho Branco? Agora é tarde, é muito tarde! – disse, olhando agitadamente para os lados com ar assustado, emendando então com um risinho sarcástico.
Um calafrio de raiva me correu o corpo e descarreguei-a chutando um pedregulho na impossibilidade de atingir meu companheiro de conversa. A verdade é que ele tinha razão. Era tarde. Minha namorada me deixara, eu tentei uma reaproximação, mas, apesar do diálogo amigável, as palavras ficaram entaladas na garganta. Não consegui expressar o que sentia, por mais tocante e verdadeiro que fosse.
– Aí você tentou ir pelas bordas, com medo de ir direto ao ponto, e ela acabou lhe escapando – disse ele, como se completasse o meu pensamento.
– Sim, pois nessa hora você apareceu e estragou tudo!
– Calma lá, meu caro! Menos! Pense bem: eu não disse nada, não fiz nada, você é que fez. Além do mais, nós dois estamos quase sempre juntos, não é mesmo?
– Para infelicidade minha... – disse eu, cabisbaixo.
Ele perdeu a calma e fez um gesto de desprezo.
– Ah, assim também é demais! Em todo esse tempo você ainda não se acostumou comigo? Não posso acreditar! E de quantas boas eu já livrei você?
– Sei lá – respondi, aborrecido –, não me lembro.
– Lembra, sim, eu não sou imagem e semelhança da sua memória, aposto como ela deve estar gritando na sua cabeça. Quantas vezes você estava pronto para soltar impropérios para o seu chefe e, na hora, você ficou calado?
– Que sujeitinho miserável, além de nos encher de trabalho, não pára de falar.
Ele então cresceu, com ar de vitória:
– Ah, eu não disse que você lembrava? – E, entre risos: – É verdade, não freqüento muito a praia do seu chefe, não gosto muito dele... mas não era disso que eu estava falando. Era das vezes em que o melhor é não dizer nada. Já na escola eu via você e, graças àquele jeito fechadão, calado...
Não resisti e revidei:
– Graças àquele jeito fechadão, calado, eu era o objeto das gozações. “Ah, pare de falar!”, “Não agüento mais ouvir a sua voz!”... Melhor, então, seria passar por bagunceiro e um dia fazer troça de alguém! Chega, chega, por que você não vai embora e me deixa um pouco em paz?
Ele sorriu, cordato:
– Experimente, então...
Interrompido o diálogo por alguns momentos, sentei-me num banco e minha visão escapou pelo meio das árvores, pelos caminhos, pelos paralelepípedos cinzentos que emergiam por trás do parque, num giro em busca de tranqüilidade. Quando voltei a visão para o lado que eu olhava antes, lá estava ele, sorrindo para mim. Levantei-me e reagi irritado, com os olhos fechados, as mãos nos ouvidos:
– Não, não, isso não pode ser, é uma tortura!
Quando vi, ele apenas contemplava a cena, batendo palmas, numa expressão cínica:
– Que espetáculo! Parece ainda aquela criança que não quer ouvir o que os pais dizem. Sabe de uma coisa? Você não tem jeito mesmo. Desisti de você. Sua namorada se foi porque ela prefere um sujeito de atitude, e agora a culpa é minha? As vezes em que eu estava lá, quando só em olhares vocês diziam tudo, você não lembra. Eu tentei ajudar, mas não adiantou. Se sua memória não lhe ajuda a trazer as palavras certas, meu caro, não posso fazer nada. Eu sou o seu silêncio, e agora você vai ter que aprender a conviver comigo.
Fiz um gesto, na tentativa de falar algo, mas ele se adiantou:
– Já disse: desisti de você.
Não consegui dizer mais nada. Saí andando, as mãos nos bolsos, e ele, calado, expressão séria, seguindo a meu lado, a uns dois passos de distância.

E o meu silêncio foi tão profundo que eu podia ouvir as folhas das árvores caindo.

(conto livremente inspirado na canção "Silence and I", de Alan Parsons e Eric Woolfson)

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