Fiquei a me perguntar, ao sair ontem à tarde, de um cinema de shopping em um bairro de classe média-alta, o que pensavam aqueles shopping-goers, perfumados, pele alva e roupas de grife, do filme a que tinham acabado de assistir – e o que estariam pensando de si mesmos. Pois, ao terminar de ver "Hotel Ruanda", não pude deixar de sentir uma ponta de vergonha de minha origem caucasóide.A trama básica de "Hotel Ruanda" assemelha-se a uma "Lista de Schindler" transposta para os conflitos étnicos na África. Em 1994, em meio a uma revolta da maioria hutu contra a minoria tutsi, que resultou na morte de mais de 1 milhão de pessoas, Paul Rusesabagina (interpretado por Don Cheadle), um hutu, acaba dando refúgio a centenas de tutsis no hotel que ele gerencia na capital de Ruanda, Kigali. O filme faz lembrar também "Um grito de liberdade", no qual o jornalista sul-africano Donald Woods (Kevin Kline) precisa escapar de seu país, dominado pelo apartheid, levando consigo o livro que escrevera sobre o líder negro Steve Biko (Denzel Washington). Duas histórias reais, dois elencos premiados, dois dramas contagiantes sobre temas relacionados – entretanto, "Hotel Ruanda" é muito superior.
Além de "Um grito de liberdade" sofrer com um corte brusco de ritmo e de plot com a morte de Biko, o filme mostra o sofrimento dos povos negros da África sob o ponto de vista de um branco. Em "Hotel Ruanda", o afroamericano Don Cheadle, além de balizar magistralmente a história do início ao fim (o que lhe valeu uma indicação para o Oscar de Melhor Ator), vivencia em seu papel a difícil sobrevivência do próprio Rusesabagina durante a revolta hutu. Ao dar abrigo aos tutsis, o gerente do hotel se torna também um refugiado, pois é considerado um traidor pelos demais hutus, e teme pela vida da sua família – a esposa de Paul, Tatiana, é tutsi. Por este papel, Sophie Okonedo também recebeu indicação para o Oscar de Atriz Coadjuvante.
A contundência de "Hotel Ruanda" está em nunca perder o ritmo da ação, bem dirigida pelo irlandês Terry George, que ainda assina, com Keir Pearson, o roteiro. Este também foi indicado para o Oscar este ano, por, de forma hábil e consistente, entremear a luta de Rusesabagina, que lança mão de todos os recursos possíveis para proteger os refugiados – incluindo suborno e relações advindas do cargo que detinha –, com cenas do verdadeiro genocídio que se tornou a revolta hutu e a incapacidade de ação dos "capacetes azuis" da ONU, liderados por um patético coronel vivido por Nick Nolte.
Mais patético ainda, contudo, é saber que as diferenças entre hutus e tutsis foram insufladas, por motivos políticos, pelos colonizadores belgas após a Segunda Guerra Mundial, o que o filme também denuncia – a mesma tática usada há décadas no Oriente Médio por aquela nação que diz defender a paz e a liberdade, comanda a ONU e, ao mesmo tempo, lidera a produção mundial de armamentos. "Hotel Ruanda", uma co-produção britânica, sul-africana e italiana, serve para lembrar que holocaustos provocados pelo ódio entre etnias não são exclusividade da Alemanha nazista – eles continuam sendo promovidos pelas grandes potências, uma vergonha que não deve ser esquecida.
Foto: www.rottentomatoes.com
Um comentário:
Uma crítica admirável a um filme verdadeiramente impressionante... Fica a vontade de que todo mundo passe a olhar mais ao seu redor, ao invés de somente para dentro de si mesmo... Utopia? Essa é a matéria que compõe o cinema.
Highly recommended ;-)
Abraços, caro amigo, e parabéns pelo texto! Até mais...
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