22.8.05

"Hotel Ruanda" e os holocaustos modernos

Fiquei a me perguntar, ao sair ontem à tarde, de um cinema de shopping em um bairro de classe média-alta, o que pensavam aqueles shopping-goers, perfumados, pele alva e roupas de grife, do filme a que tinham acabado de assistir – e o que estariam pensando de si mesmos. Pois, ao terminar de ver "Hotel Ruanda", não pude deixar de sentir uma ponta de vergonha de minha origem caucasóide.

A trama básica de "Hotel Ruanda" assemelha-se a uma "Lista de Schindler" transposta para os conflitos étnicos na África. Em 1994, em meio a uma revolta da maioria hutu contra a minoria tutsi, que resultou na morte de mais de 1 milhão de pessoas, Paul Rusesabagina (interpretado por Don Cheadle), um hutu, acaba dando refúgio a centenas de tutsis no hotel que ele gerencia na capital de Ruanda, Kigali. O filme faz lembrar também "Um grito de liberdade", no qual o jornalista sul-africano Donald Woods (Kevin Kline) precisa escapar de seu país, dominado pelo apartheid, levando consigo o livro que escrevera sobre o líder negro Steve Biko (Denzel Washington). Duas histórias reais, dois elencos premiados, dois dramas contagiantes sobre temas relacionados – entretanto, "Hotel Ruanda" é muito superior.

Além de "Um grito de liberdade" sofrer com um corte brusco de ritmo e de plot com a morte de Biko, o filme mostra o sofrimento dos povos negros da África sob o ponto de vista de um branco. Em "Hotel Ruanda", o afroamericano Don Cheadle, além de balizar magistralmente a história do início ao fim (o que lhe valeu uma indicação para o Oscar de Melhor Ator), vivencia em seu papel a difícil sobrevivência do próprio Rusesabagina durante a revolta hutu. Ao dar abrigo aos tutsis, o gerente do hotel se torna também um refugiado, pois é considerado um traidor pelos demais hutus, e teme pela vida da sua família – a esposa de Paul, Tatiana, é tutsi. Por este papel, Sophie Okonedo também recebeu indicação para o Oscar de Atriz Coadjuvante.

A contundência de "Hotel Ruanda" está em nunca perder o ritmo da ação, bem dirigida pelo irlandês Terry George, que ainda assina, com Keir Pearson, o roteiro. Este também foi indicado para o Oscar este ano, por, de forma hábil e consistente, entremear a luta de Rusesabagina, que lança mão de todos os recursos possíveis para proteger os refugiados – incluindo suborno e relações advindas do cargo que detinha –, com cenas do verdadeiro genocídio que se tornou a revolta hutu e a incapacidade de ação dos "capacetes azuis" da ONU, liderados por um patético coronel vivido por Nick Nolte.

Mais patético ainda, contudo, é saber que as diferenças entre hutus e tutsis foram insufladas, por motivos políticos, pelos colonizadores belgas após a Segunda Guerra Mundial, o que o filme também denuncia – a mesma tática usada há décadas no Oriente Médio por aquela nação que diz defender a paz e a liberdade, comanda a ONU e, ao mesmo tempo, lidera a produção mundial de armamentos. "Hotel Ruanda", uma co-produção britânica, sul-africana e italiana, serve para lembrar que holocaustos provocados pelo ódio entre etnias não são exclusividade da Alemanha nazista – eles continuam sendo promovidos pelas grandes potências, uma vergonha que não deve ser esquecida.

Foto: www.rottentomatoes.com

Um comentário:

Katia K. disse...

Uma crítica admirável a um filme verdadeiramente impressionante... Fica a vontade de que todo mundo passe a olhar mais ao seu redor, ao invés de somente para dentro de si mesmo... Utopia? Essa é a matéria que compõe o cinema.
Highly recommended ;-)
Abraços, caro amigo, e parabéns pelo texto! Até mais...