24.12.06

Os dois Natais

Nem bem terminou outubro, e o cessar-fogo televisivo pós-Dia da Criança já era um aviso: Santa Claus is coming to town. Os jovens lindos e sarados, bebendo cerveja na praia, começam a conviver nos intervalos comerciais com a neve, os pinheiros e um batalhão de Papais Noéis encasacados a despeito dos 40 graus – um sincretismo cultural que ninguém, neste país do jeitinho, e miscigenado por natureza, ousa desafiar.

Essa cultura que importamos do norte da linha do Equador e abraçamos sem pestanejar tinha em minha infância uma aura mágica, como se a noite de Natal fosse mesmo diferente das outras, independentemente dos presentes. A sala escura para o pisca-pisca das luzes, o intenso cheiro das folhas da árvore (que ainda era um pinheiro de verdade naquela época) e “A harpa e a cristandade” de Luís Bordon, eu os fotografei mentalmente, temperados por uma estranha sensação de mistério e felicidade contemplativa.

Aos poucos, essa fotografia deixou de ter importância no meu álbum, e aquela estranha sensação transferiu-se para outros dias, como o Ano Novo. Sem traumas, como a descoberta de que Papai Noel não existia. E sem uma razão específica... o “adeus” que recebi três dias antes do Natal? Não. A descoberta de que ia à missa apenas por razões sociais? Tampouco. A consciência de que o bom velhinho deixou de ser um santo para trabalhar como garoto-propaganda? Esta contribuiu, mas foi mais conseqüência do que causa.

Talvez tenha sido apenas a evolução natural de um caráter. O aniversário de Jesus foi deixado meio de lado, ficando apenas o hábito de reunir a família, cear e trocar presentes. Tradição? Imposição social? Inércia? Um pouco de cada, é provável. Ironicamente, a festa que deveria ser a mais espiritual passou a ser o supra-sumo do comercial.

Minha visão, não tanto materialista, mas questionadora, então se impôs: existe algo que transcende, mas não tenho certeza de que é isso. E, como se estivesse em um deserto, o da falta de convicção religiosa, já fui tentado a não participar mais dessas comemorações em que o aniversariante é raramente lembrado. Parecia hipocrisia.

Entretanto, em nome de outro Natal, que também surgiu justamente de uma postura mais racional, continuei a presentear os mais próximos e desejar feliz Natal – embora o Ano Novo tenha muito mais efusão. Se valores de outras culturas, como a fidelidade do Islamismo e o apego à tradição no Judaísmo, tanto merecem minha admiração, por que não o hábito de celebrar o nascimento do Deus encarnado homem?

Cada um, em outras palavras, tem seu próprio Natal, e é em respeito à convicção dos outros que desejo felicidades. Se o Cristianismo falhou ao deixar que se perdesse o caráter espiritual de suas mais importantes festas, resta a instância pessoal. O presente não é mera obrigação, é a alegria de presentear e ver um sorriso. Afinal, esses são valores que um dia fotografei e ainda têm posição de destaque em meu álbum.


Então, se o pinheiro é alemão, adornado com lâmpadas como reza a tradição norte-americana, e se Papai Noel é um santo nascido na Ásia Menor e desenhado e vestido pela Coca-Cola, é menos importante. O que importa é a convicção de cada um, que as ações com ela se coadunem e que o Natal, represente ele o que representar, seja um dia feliz. Isso é o que devemos desejar.

3 comentários:

Anônimo disse...

Rê,
Prometi e cumpri!! (rs)
Como sempre, belíssimo texto e perfeitas observações!

Assino embaixo! (Literalmente!Ehehehe)

Beijos,
Mana Mila.

Katia K. disse...

Caro amigo,

Pra vc também! Um ano novo maravilhoso e cheio de boas surpresas :-)

Grande abraço!

Anônimo disse...

Eu adorei o retrato do seu Natal.
Sinto assim também.
Mas o consolo é que nossos filhos ainda vêm essa época com o encantamento com que víamos quando éramos crianças.
Então, o fato é que o Natal continua o mesmo. Nós que mudamos.
Existem mesmo dois Natais. O que ficou lá, guardado, e outro que acontece aqui.
Um beijo.
Você sabe ;)