30.11.05

Cinco da manhã

Puxo a cortina, abro o vidro e deixo entrar a visão da brisa fresca da ainda madrugada. Mas, conforme a época, o espetáculo se torna mais belo, pois no início do verão, às cinco da manhã, graças ao famoso paralelo 30 cantado por Kleiton e Kledir, o dia já está quase nascendo em Porto Alegre.

É verão? Combinado, então. Talvez a magia do momento seja mais intensa, pois a cidade se comporta como se fora noite, apesar de já ser dia.

Quisera ter nessa hora um amplo terraço para ver essa mesma paisagem do alto ou, melhor ainda, uma varanda sobre uma coxilha. Entretanto, deixo os delírios de poder econômico ou de vida no campo e contento-me com o quadro que a janela da sala emoldura. Para um ser urbano, já é um alívio ver a cidade quieta e praticamente silenciosa.

Estou a apenas trezentos metros de uma das principais avenidas, ligando o aeroporto ao centro, e que, àquela hora, ainda não tinha se lembrado de acordar. E a multidão de caixas cinzentas de concreto não oferece risco (ainda) a uma pequena floresta em um terreno abandonado lindeiro, que vejo à minha frente.

Algum dia, esse verde há de se render, mas, enquanto isso, agradeço pelos pássaros, borboletas e pitangas quase à beira da janela. Um oásis e seu cheiro esverdeado que quase me fazem esquecer onde estou, pois a trilha sonora inclui sabiás, uma carroça passando na rua e o rumor longínquo de um que outro automóvel.

Pena que o momento não perdure. Trinta minutos de espetáculo e o ruído de veículos ao fundo já é mais intenso e constante, e o primeiro ônibus do dia passa em frente, quebrando o silêncio.

Entretanto, esses minutos de ar fresco, sem fumaça e pássaros cantando me vacinam para o resto do dia, pois vejo do que uma cidade com um milhão e meio de habitantes é capaz. Fala-se tanto dessas metrópoles que nunca param... não vejo orgulho nenhum nisso. Porto Alegre, felizmente, ainda tem galos cantando em uma extensa zona rural, aos poucos sendo levada pelos condomínios horizontais dos sonhos dos privilegiados. Minha cidade ainda pára, nem que seja por algumas horas. E poder presenciar isso faz valer a noite insone.

27.11.05

Soneto do tempo

Lá vai o tempo, este vento ligeiro...
Que afasta as estrelas e traz tempestade,
Que leva a presença e deixa a saudade
E faz o amor parecer estrangeiro.

Nem bem deixou se sentir por inteiro
O tempo é presente, perpassa e invade,
Erguendo barreiras, destruindo cidades,
Ventando implacável, veloz, altaneiro.

Quem dera o tempo deixasse um aviso
E desse a saber se o próximo vento
Carrega consigo o choro ou o riso.

Mas sinto na pele da brisa um alento:
Morrer o tempo a cada instante é preciso

Pois traz como herdeiro um novo momento.

20.11.05

Eisenstein e o neófito

Quem diria que um atraso de meia hora pudesse ser tão proveitoso? Interrompidas as atividades da oficina de cinema porque um colega não pôde chegar antes, as pessoas se puseram a conversar. E minha curiosidade de neófito me fez puxar papo com alguém que já parecia ter concepções bem sólidas a respeito de cinema.

Se minhas idéias esbarravam em um vocabulário ainda limitado, meu colega conseguia, com exatidão e simplicidade, explicar alguns conceitos que me intrigavam. Simplicidade essa que começava com a máxima de Gláuber Rocha: "Uma câmera na mão, uma idéia na cabeça". Que digam que o Cinema Novo não merece mais esse adjetivo, mas o fato é que não precisamos, por enquanto, de tecnologia de ponta para fazer cinema. Um desenho animado rudimentar, um VHS caseiro, nada de grandes equipamentos ou efeitos especiais - mas ainda é possível, por essa prática, aprender a fazer cinema.

Eu já intuía que, assim como no texto jornalístico, inexiste a objetividade no cinema. Mesmo preso a um roteiro, o diretor põe sua marca pessoal (mesmo se for a do estúdio) em cada decisão tomada no set, em cada duração de tomada. E isso pude ver de perto na hora da montagem do vídeo da oficina - ou edição, se falarmos do processo digital.

Foi então que meu colega me falou sobre Sergei Eisenstein, aquele diretor soviético da primeira metade do século XX de quem tudo que eu lembrava era uma sessão de O Encouraçado Potemkin e uma antiga foto, de olhar compenetrado e quase rude, analisando uma película.

A montagem, para Eisenstein, era a etapa mais importante do processo cinematográfico. Mais, inclusive, que o roteiro, as atuações ou a própria filmagem. O plano era a unidade básica do cinema, e era na montagem que o diretor escolhia exatamente o que seria exibido, por quanto tempo, com que enquadramentos... E, no caso do cinemão norte-americano, pré-fabricado, o diretor muitas vezes nem interfere na montagem, que fica a cargo de um montador encomendado pelos grandes estúdios (que cinema autoral, o quê! O povo quer circo, que se lhe dê circo!).

A conversa de meia hora migrou de enquadramentos para montagem, e daí para a força dos grandes sindicatos norte-americanos, que encarece o filme, e depois para a semiótica, assunto árido com o qual nunca convivi pacificamente. Cada elemento de um filme é um signo, lembra o meu colega, e, se em um filme épico como Gladiador ou Ben-Hur alguém, por descuido, aparecer em cena com um relógio de pulso, este não será apenas um relógio: será um signo, que carrega um significado por representar uma época que não é a que o filme quer mostrar. Com essa ilusão frustrada (pois criar ilusões é uma das funções do cinema), o filme pode cair no ridículo.

Voltei para casa com o pensamento em ebulição por causa de tantos temas fascinantes, e com a certeza da necessidade de me embrenhar mais nesse universo - desta vez, nem a semiótica que sempre desprezei escapa. Avisei Ivanhoé por mensageiro, uma vez que telefone e e-mail não condizem com uma história ambientada no século XII: "Senhor Cavaleiro, voltareis para a estante temporariamente". No lugar dele, veio comigo As principais teorias do cinema, de Dudley Andrew, para que eu desse boas-vindas a vários pensadores da chamada sétima arte.

Logo de início, descobri que Eisenstein, apesar de sua capacidade assombrosa como diretor e como teórico, também pecou justamente por jogar ilogicamente suas idéias, tamanha a abrangência do seu pensamento. E que algumas das idéias do diretor restam superadas, pois excluíam a opinião do espectador. Entretanto, isso em nada desmerece as descobertas de uma simples noite. Tomei uma decisão que transformou meia hora de atraso em um grande avanço em termos de conhecimento.

10.11.05

Lado só

Na aléia deserta
Os únicos passos
São das folhas ao vento.
Nas ruas vazias
Milhares de almas
Dissimulam sem rumo.
No turvo dos olhos
Desenho um espaço
Infinito e oculto.

E mesmo uma tarde brilhante
Encinza qual árvore seca
Se é ausente a presença.
Quem sabe o dia algum dia
Desperte e faça bastante
Saber ao meu lado... e só.