31.3.06

Semeatura

Plantei sementes de pedra
No meu canteiro de obras
E belos botões floresceram
De um, de dois, de três quartos.

A quem pagar pela vista
Um pouco de verde ofereço
Enquanto não for semeado
Com arquitetura mais bela.

28.3.06

O centrão da pizza

A que ponto chegamos. Um deputado estadual do PFL gaúcho aparece em propaganda na TV pregando um Estado “mais igualitário, mais liberal”. Ora, ele deu o caráter de sinônimo a duas condições político-econômicas incompatíveis. Afinal, o “Estado liberal” só é igualitário em dar mais condições àqueles que já as possuem.

Repetindo: a que ponto chegamos. Um dos partidos mais comprometidos com o capitalismo industrial e financeiro apresentando-se como via alternativa a mais quatro anos de descrédito na política, desta vez propiciados pela desilusão na estrela amarela do PT.

Ontem, pediram demissão (apenas) o ministro da Fazenda e o presidente da Caixa Econômica Federal, pelo envolvimento na quebra do sigilo bancário de um caseiro. Em que mãos estamos? O governo e os bancos já giram com nosso dinheiro, obtendo lucros absurdos; agora deram para girar com nossas informações particulares.

É bem verdade que o escândalo atingiu tamanha proporção que não restou alternativa aos envolvidos na quebra do sigilo senão a demissão. Mas quero ver se eles serão realmente responsabilizados pelo que fizeram. Se o presidente da CEF pegar os seis anos de prisão imputáveis ao crime que confessou, eu sou o sultão da Gongólia. Afinal, apesar da fama que a pizza tem como parte do cardápio paulistano, as melhores casas do ramo parecem ficar em Brasília.

O problema é que, se não faltam boas opções de pizzarias no mercado, o mesmo não acontece com os partidos políticos. Em vinte anos como eleitor, já vi uma ciranda de governos no Palácio Piratini, outra no Planalto – e pouco mudou. Enquanto o Partido dos Trabalhadores mantinha (alguma) coerência em dezesseis anos no governo municipal, eu via Lula, de operário a presidente, podando a barba e o discurso para que a corrente ideológica dominante o aceitasse no poder. Nesse tempo, a ditadura militar foi apenas substituída pela civil. Em termos de dignidade e cidadania, pouco se conquistou.

No final, em quem confiar? No PSol? Na hipotética “terceira via”, de existência ainda não comprovada? Não parece haver direita e esquerda; estas pertencem ao campo teórico. A prática é a do centrão todos-corporativamente-juntos, aparentando algumas diferenças para efeito de perfumaria, como nos partidos políticos norte-americanos.

Algumas coisas melhoraram, sem dúvida. Há trinta e cinco anos, este texto mereceria os porões do governo Médici. Entretanto, a desilusão persiste. Como a jornada de 14 de julho de 1789, em Paris, que, ao final, resultou apenas na troca de uma elite por outra. Por isso o velho é apresentado como novo (de novo) na TV. E muita gente ainda acredita.

26.3.06

Três ponto nove

Nem parecia. Um dia absolutamente normal para a época – com chuva, mas quente, como se o verão ainda quisesse resistir ao outono que já começou. Um dia obscuro no calendário, esse tal de 23 de março, perdido entre o Carnaval e a Páscoa, sem nada de especial, não fosse meu aniversário.

Eu sempre me sinto esquisito nesse dia. É como se fosse mais propriedade minha que dos outros. Se Tiradentes, Nossa Senhora, pais, mães, crianças, todos têm um dia, por que não posso ter o meu?

Fico a pensar: 25 de dezembro é o aniversário de Jesus Cristo; 1º de janeiro, o aniversário do tempo – pelo menos em nossa cultura. Mas ambos são convenções, criadas em nome de uma incerteza. O aniversário de uma pessoa, não. É um aniversário de verdade. Foi nesse exato dia que se nasceu, e nessa exata data se completam tantas voltas da Terra em torno do Sol. Uma marca a mais, definitiva, em um trajeto cuja distância total é ignorada. É ou não para mexer com a cabeça da gente?

Conheço quem não comemora aniversário; outros vão mais longe, nem sequer admitem que a “data fatídica” venha a público. E essas idades, naturalmente, acabam sendo as mais comentadas. De minha parte, até agora isso não me incomodou. Mas, pensando bem, a idéia assusta: um ano para os 40. Porque, se toda mudança de década é em certa medida atemorizante, esse 4 olhando para mim, aproximando-se, ao mesmo tempo parece afastar aquela idéia de juventude propalada na mídia. O 3 ainda vá lá. Agora, o 4?

E foi só bater na trave dos 40 para ouvir falar nos famigerados enta. Fosse na língua de Shakespeare, seria melhor, pois os ty teriam começado mais cedo, aos 20. E agora? Rendo-me às fórmulas de auto-ajuda, aos eufemismos? “Não é idade, é experiência”, “A vida começa aos 40”... Isso eu saberei daqui a um ano. O que eu sei, agora, é que o melhor de chegar a certa idade é perceber que não se é, por dentro, tão velho como imaginávamos quando crianças.

Meus pais, agora, têm a mesma idade de meus avós quando eu estava no primário. E, de alguma forma, eles são mais jovens. Na cultura ocidental, a morte ainda é um tabu e o jovem é cultuado – o que também tem seu lado positivo, pois os novos tempos têm incentivado hábitos diferentes, como viagens, exercícios físicos, roupas mais joviais, e tudo isso se reflete na idade aparente.

O tempo, depois de um certo tempo, parece andar mais rápido, mas também é cada vez menos absoluto. Na reta final para os enta, prefiro ter uma idade para cada momento. Nas horas tristes, posso ter 70 e, nas alegres, voltar aos 17. Mas isso já é outra história...

(Em tempo: à procura de um referencial importante, descobri que 23 de março é Dia do Meteorologista, aniversário de Florianópolis e data nacional do Paquistão. Por aqui, meu dia ainda é uma data perdida no calendário...)

15.3.06

Habitas

Por que habitas o meu pensamento?
Por que não posso expulsar-te
Se não hesitaste em fazer-me o mesmo?
É doce lembrar o caminho trilhado
Quando se é o caminhante –
Eu era apenas a areia pisada.

Diva do amor impossível
– pois nunca irás conhecê-lo –
A paz não existe em nossa fronteira.
Ergui um pendão com a cor da pureza
E aquela ferida de novo sangraste
No fio de uma alma irresponsável.

Por que habitas o meu pensamento?
Por que vieste acordar minha noite
Se nem te lembravas de quem nunca esquece?
Afasta-te agora, apaga tua luz
E deixa uma noite que eu mire no céu
Se um sonho ainda vaga por entre as estrelas.

13.3.06

Meu dia de fúria

Ontem, em um supermercado, o frasco de Toddy com 400g estava em promoção por R$ 2,89. Fui conferir se havia em sachês, que costumam oferecer 500g pelo mesmo preço de 400g. Para minha surpresa, os sachês custavam R$ 2,98. Ora, isso não fazia sentido. Se a embalagem do sachê dizia “500g pelo preço de 400g”, quer dizer que ela deve custar o mesmo preço que se paga por 400g, não é mesmo? Que explicação se dá para esses R$ 0,09 de diferença? Coloquei cinco sachês no carrinho e, após pagar as compras, procurei a gerência.

Um funcionário do supermercado me disse que, além de o preço da promoção depender de “negociação” do supermercado com o fornecedor, sachê e frasco são “produtos diferentes”, por isso o preço maior. Ora, não é o mesmo produto que está no frasco e no sachê? E mesmo que aceitemos a justificativa do funcionário, que referencial de preço a frase promocional do sachê vai utilizar, se o supermercado não oferecia sachês com apenas 400g?

O que acontecia naquele momento era óbvio: o consumidor perdia a “promoção” do sachê para que se criasse a ilusória “promoção” do frasco. Em outras palavras, alguns produtos ficam mais caros para que paguem os que estão mais baratos. O comerciante, assim, sempre ganha, e eu não preciso dizer quem sai perdendo.

Estava em um supermercado que praticamente monopoliza o setor em Porto Alegre. Quem é daqui sabe de que família a serviço da comunidade estou falando. Não acredito que essa rede tenha qualquer dificuldade na hora dessas, digamos, negociações. Não é à toa que não precisei de mais de um minuto para convencer o funcionário a me devolver os R$ 0,45 a que eu tinha direito. E ainda levei, de lambuja, mais um sachê de graça para casa — para que o funcionário pudesse se ver livre de mim.

Pode parecer ridículo brigar por tão poucos centavos, mas não é isso que está em jogo. Não são os centavos o problema, mas a dignidade. Se parasse para reclamar de tudo que vejo, eu enlouqueceria. Mas de vez em quando é necessário ter um surto de indignação e fazer como Michael Douglas no filme “Um dia de fúria”. Somos tratados como se estúpidos fôssemos porque permitimos. Se mais pessoas se preocupassem com esses pequenos assaltos do dia-a-dia, os comerciantes também não explorariam tanto o consumidor.

Uma vez precisei ficar mais de meia hora pendurado em um 0800 para convencer a gerente do melhor banco do mundo a estornar R$ 0,10 debitados, sem explicação, da minha conta. De quantos o banco não tirou essa quantia “por engano”? Convenhamos, são só dez centavos, mas são meus, não do banco. A mesma coisa diz respeito à compra no supermercado. O vendedor conta com um consumidor passivo e letárgico, e não com uma reação ridícula e mesquinha como a que eu tive. Por isso as coisas seguem como estão. Entretanto, mais que se livrar de mim, o funcionário do supermercado provou uma coisa: no fundo, no fundo, que nem Michael Douglas, eu tinha razão.

11.3.06

(Fal)cidade

Não existe referência
Nas placas desta cidade:
A Estrada da Aparência
Contorna o bairro da Verdade.



(www.ximnet.com.my)

8.3.06

No espelho

Na úmida névoa de um dia cinzento
Meus passos avistam um vulto achegar-se
E os dedos que quase tangiam a pele
Quedaram apartados num toque de vidro.

Oprime meu peito ausente palavra
Que acorra e descreva a dor da alegria
Desfeita ao ver tão de perto e somente
Tocar a imagem do que não seremos.

É um sonho que vejo, tão belo e tão triste
O vulto evanesce num vôo distante
E o súbito ardor que aquecia minh'alma
Condensa em forma de lágrima a névoa.

2.3.06

A poetisa

"Po-e-mas-no-ô-ni-bus" - recita
A menina sentada a meu lado
Mirando um cartaz na janela.
Um poema de amor ele dita
À menina de olhar azulado;
Que novo universo desvela?

Gravei na memória essa cena;
Versos, metáforas, rimas,
Amor, ó palavra imprecisa...
Que dirá o coração da pequena?
No fundo a esperança que anima
É ouvi-la dizer: serei poetisa.